sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Antologias - IX

                                               
Acentuado arrefecimento nocturno

O ano começou com céu pouco nublado
ou limpo, apresentando períodos de maior
nebulosidade nas regiões onde as palavras
se desfazem, prolongando a súbita coagulação
do medo nos meus olhos. Junto ao mar do Norte,
enquanto o precipício da luz incidia no meu rosto,
tornando-o, por instantes, o verso de um poema,
o vento soprava fraco a moderado do quadrante
leste e eu recordava que, afinal, aquele
era o lugar que não existia, outro verso a mesma
poesia, um lugar onde pronunciava o teu nome
sem que soubesses, tão rente quanto possível
ao contorno mais sombrio dos elementos.

De acordo com o Instituto Português do Mar
e da Atmosfera, havia, ainda, que contar com um
acentuado arrefecimento nocturno, com formação
de geada sob as partículas mais florais e longínquas
dos poemas, em especial no interior assilábico
deste percurso a que, por engano, chamo coração.
de Boletim Meteorológico

Sandra Costa (Boletim Meteorológico, volta d'mar, 2020)


Acentuado enfriamiento nocturno

El año ha empezado con cielo poco nublado
o despejado, con periodos de mayor
nubosidad en las regiones donde las palabras
se deshacen y prolongan la repentina coagulación
del miedo en mis ojos. Junto al mar del Norte,
mientras el precipicio de la luz incidía en mi rostro,
volviéndolo, por momentos, verso de un poema,
el viento soplaba de débil a moderado desde el cuadrante
este y yo recordaba que, al final, aquel
era el lugar que no existía, otro verso la misma
poesía, un lugar donde pronunciaba tu nombre
sin que lo supieras, lo más junto posible
al perfil más sombrío de los elementos.

De acuerdo con el Instituto Portugués del Mar
y de la Atmósfera, aún habría que contar con un
acentuado enfriamiento nocturno, con formación
de heladas bajo las partículas más florales y lejanas
de los poemas, en especial en el interior asilábico
de este camino al que, por engaño, llamo corazón.

[...]

Sandra Costa
Tradução de J. León Acosta e Uberto Stabile

[Poema publicado na antologia Tras los claveles. 35 poetas portuguesas.1970-1999, Ediciones GARVM, 2022].

Antologias - VIII

                                               

Fotografia de Bernardino Pires

Desejo impróprio

O solstício de Verão ocorrera no dia anterior.
As horas diurnas começavam a decrescer
em compasso lento, lentíssimo, irregular,
ao ritmo inquieto das festas onde quase
todos os enlevos, fábulas e sortilégios
procuravam encostar-se aos corpos
que caminham no dorso da penumbra.
.
Crescia a esmo nos quintais alheios,
entre as ruínas opacas do tempo,
o alho francês espontâneo, no tom
que se deseja purpúreo, outrora colhido
na noite joanina e que agora se vende,
porro, aos molhos, de antemão,
apagadas as sombras antigas dos gestos.
.
Assim expostos, nítidos como só
os desejos mais impróprios se escondem
nas palavras íntimas que não chegam
a compor-se, tudo o mais fica desfocado,
as três mulheres que nunca cumpriram
a madrugada rebolando-se no orvalho
dos campos, o homem que não se enquadra
nestes desígnios, nem com o olhar,
e eu que regresso a casa, tantos anos depois.
.
Trémula, sem saber o que significa
um encontro ou uma canção
que ainda ouço como se pudesse
ser cura para o amor, não reconheço
o toque das plantas liliáceas, nem
me reconheço naquelas três mulheres
que caminham na quietude
das vidas consumadas.

Sandra Costa

Poema escrito para a fotografia acima incluída de Bernardino Pires.

[Poema publicado na antologia A cidade do Porto na Obra do Fotógrafo Bernardino Pires, in-libris, 2022].

Antologias - VII

                                               


Abeiro-me do princípio

Abeiro-me do princípio, do precipício cego
da primeira palavra, do primordial canto
das musas sobre a extinção do silêncio
do mundo, desse bosque sagrado onde nove 
vozes entoam o tempo, cobrindo de flores 
silvestres as grinaldas que só existem nas noites
crónicas mais incandescentes. 

O que começa é já um rasto que se alonga,
apagando-se, como uma sombra subindo a colina 
do Hélicon, debruando de melancolia as encostas
descendentes, a seiva, o pólen, a saliva terna 
trémula translúcida do primeiro beijo, aquele
que se deu, aquele que se deseja, o sémen 
onde vagueia a alegria, essa fonte que sendo
espelho, dança, expiação musical, nunca será
o rosto de Clio, nem a penumbra memória
maternal.

Concretizo campânulas candeias cisternas
com a erosão das palavras sobre o esquecimento
e as formas mudas rasas verdadeiras, o sonâmbulo 
e petrificado universo dos mortos, os lugares 
pendulares das aves e das estações, transfiguram-se,
de novo, tantos séculos depois, na alegoria de 
Vermeer, recriando símbolos narrativos e 
efeitos de luz. Fórmulas mudas rasas verdadeiras
para que os instantes se perpetuem, repetindo-se, 
na terceira margem do rio de Guimarães Rosa, 
essa parte nenhuma do silêncio escrito, onde 
persistem pernoitam perduram as canoas 
dos homens que partem. «Esta vida é só 
o demoramento». E o amor.

Sandra Costa

[Poema publicado na antologia 110 anos, 110 poetas. Antologia comemorativa dos Cento e Dez anos da Universidade do Porto, U.Porto, 2021].

Antologias - VI

                                               


As palavras poupadas

Tivesse Graça aberto a janela, naquele anoitecer
do dia dez de Outubro de um ano qualquer,
mas vinte anos depois, e por baixo do candeeiro 
que ficava no passeio em frente coincidisse 
a sombra daquela que combinara aparecer depois
das seis com o que restava deserto e molhado na rua 
e talvez tudo pudesse ficar irremediavelmente 
diferente e consertado e não fosse uma corrente 
infinita de palavras poupadas.

Soubesse Graça o nome da árvore que permanecia
do outro lado da janela do quarto, não fossem 
para ela as árvores apenas árvores, folhas fustigadas 
pelo vento que por vezes lhe vinham tocar na vidraça 
pedindo refúgio, e talvez uma palavra mais tivesse
sido pronunciada, e não silenciada, as palavras
apagadas do pensamento como prometera a alguém, 
«custava alguma coisa?», as palavras que não eram 
simples como todos supunham e podiam compor 
o que já estava estragado para sempre e naquela noite 
em que ela se calara mais uma vez e estremecera 
com a teia de aranha que lhe tocara no rosto e era 
tão só um fiapo das flores dos castanheiros-da-índia, 
que na Primavera davam sabor à aragem na cidade, 
havendo afinal pelo menos o nome de uma árvore 
que lhe ficara inscrita na memória.

Pudesse Graça abrir os olhos, que uns dias eram
verdes como as algas e noutros dias eram castanhos
sem qualquer comparação, e há muito teria reparado 
que a pintura, pendurada no que tem de intacto 
o tempo dos velhos lugares, tinha um traço grosseiro, 
«ainda desenhas?», invadira-a de repente a provocação, 
e que o desejo de ir era o de esperar. Esperava que a 
compreendessem e a perdoassem. Esperava o amor, 
a liberdade, regressar onde já nada a esperava e 
esperava que lhe escrevessem, mas era dia de espantos
e Graça sabia, por aquela que combinara aparecer depois 
das seis, que nunca se deve pedir que nos escrevam. 
«Não percebes que é um pouco como se lhes 
pedíssemos uma esmola?» O desejo de ir não era 
uma dança, um dia fora um largo mar, sempre o mar, 
ou uma longa jogada de xadrez consigo própria, 
quase uma explicação, mas o desejo de ir, de seguir 
adiante com os olhos postos em doce repouso no fim 
do caminho, morre todas as noites para não voltar.

Sandra Costa

Poema escrito com «As Palavras Poupadas» e «George» de Maria Judite de Carvalho».

[Poema publicado na antologia Água Silêncio Sede. Homenagem poética a Maria Judite de Carvalho no centenário do seu nascimento, Poética Edições, 2021].

Antologias - V

                                               


«um lugar sem onde» [1]

Sabes, Mário, escrever-te é uma ousadia.
Até há pouco tempo eras apenas um nome
entre a pintura e a escrita que eu não sabia
sequer situar. Mas o mundo está sempre 
a designar as coincidências necessárias para
que algo se crie, mesmo quando é a morte
a aproximar-se que me leva até ti.

Outro Mário trouxe-me as coordenadas 
para te encontrar: a Nazaré, a Pedra do Guilhim,
tu desalinhado a caminhar numa memória difusa 
com os dois galgos e «um lugar sem onde»,
que passou a ser o teu lugar porque é o sítio
onde está o meu olhar. No segundo verso desta 
estrofe, troquemos o verbo encontrar por descobrir,
os dois sabemos porquê, e mesmo que a morte
venha como um caminho de dez ciprestes, também
eu acreditei em algo bonito para onde caminhar.

Sabes, Mário, numa noite de Setembro, não 
nesta de Maio que nada nos diz, nesse mês 
que trouxe a tua morte e o meu nascimento, 
talvez consiga ficar sem pé como tu e, com um 
S bordado numa túnica porque não uso vestidos, 
talvez volte a sonhar acordada, da forma que só 
nós conseguimos fazer, e me aproxime das 
tuas queridas nuvens como nunca me consegui 
aproximar, mesmo que acabe de pressentir 
que foram sempre elas, e o mar, a trazer-me 
o longe, o amor, para dentro dos poemas.

Olho uma última vez para o teu texto aguarela,
o primeiro e o último adeus, conto de novo 
sete mais três ciprestes, contorno os ombros 
desnudados da mulher que nunca fui nem serei, 
mesmo de costas, e de pormenor em pormenor,
evocando os regatos apenas descritos, repetindo
as tuas manhãs de tímidas madrugadas, tento 
chegar a esse minúsculo espaço inquieto que
existe e nos separa neste encontro, cada um 
com a sua solidão, e que, afinal, não hesitemos,
define o mundo, esse «lugar sem onde».

[1] Verso de m. parissy in norte, falca e légua, Companhia das Ilhas, 2021.

Sandra Costa, 19-20 de Maio de 2021, sobre o Texto/Aguarela de Mário Botas, de 18-19 de Dezembro de 1977

[Poema publicado na antologia Falar dele no céu de uma paisagem. Poemas para Mário Botas, volta d'mar, 2021].


Lisboa, 18-19 de Dezembro de 1977

Minhas coisas tão docemente amadas, meu Oceano que és para mim o que nunca foste nem serás para ninguém, minhas manhãs de tímidas madrugadas, minhas águas correntes de regatos imensos que não estão no corpo mas na alma e desaguam sempre noutro rio até chegarem àquele a quem os antigos chamavam Letes. Minhas queridas nuvens:

É uma grande ingratidão amar-vos tanto e ainda vos não ter escrito. Mas sei que me hão-de perdoar. Se só agora vos falo é porque talvez esteja agora mais longe de vós e mais sinta a vossa falta. Talvez por ter sido sempre impenetrável na minha completa solidão e me convencer finalmente que vou morrer tão só como nasci e cresci. Só que então eu não dava por isso. Damos sempre pelas coisas quando elas já passaram… Não sei porque escrevi «Damos»… «Dou» era o que eu devia ter escrito. Esqueço-me sempre de que só posso falar — e aproximadamente — de mim. Com o resto nem sequer me devia preocupar. O milagre de estar vivo e de vos conhecer é tão grande que me devia bastar para encher os dias todos, mesmo que eles fossem muitos. Mas… esquecemo-nos tão depressa destas coisas tão simples! Lá estou eu a falar outra vez no plural! Nisto como em tantas outras coisas não vou ter emenda até ao fim dos meus dias.

Quando vocês me conheceram eu ainda não dava sequer por vós, meio assustado ainda com a vida… Agora já muito pouco me assusta, ia a dizer quase nada. Por isso abro mais vezes os olhos para vós e chego a pensar que me escutam.

Foi tudo tão rápido embora eu goste de velocidades!!! E no meio de duas pessoas que se encontram como no meio de alguém que se encontra a si próprio há sempre um espaço qualquer que nem por poder ser muito pequeno deixa por isso de ser muito importante. Tão importante que se não existisse não havia o Mundo… Tenho pena de vos deixar assim… Mas não é o hesitar que faz o êxito. E muito menos o ser de Tão Longe.

Tenho-vos sempre na lembrança.
Mário

Aguarela de Mário Botas, 1977 in Catálogo da Primeira Exposição Póstuma da Obra de Mário Botas, Cooperativa Árvore e Centro de Estudos Pessoanos, 1984 e Texto transcrito in Aventuras de um crâneo e outros textos, org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas, Lisboa: Averno 2013.

Antologias - IV

                                               
Para a Ana Paula Inácio

Volta

Volta. Não te demores
na pequena tempestade súbita
que é o tempo quando anoitece
por baixo da copa das árvores
e o silêncio se torna mais denso
que as palavras.
Sabes que é das aves o diâmetro 
das fendas, dos naufrágios, 
da escuridão.
Calcula a distância entre os dois
flancos – sombras e presságios – 
e expõe-te ao que está para acontecer.
Coloca um pé no princípio do mar.

Sandra Costa

[Poema publicado na antologia Sete, volta d'mar, 2018, dedicada aos sete anos da editora volta d'mar].

Antologias - III

                                               

[desconheço] o que vai para além

[desconheço] o que vai para além
do cheiro das flores, o que vai para além
do sol abrindo as manhãs entre nuvens
que parecem de certa forma intransponíveis,
o que vai para além dos musgos crescendo
em telhados abandonados, o que vai para
além das sombras que se encontram

[desconozco] lo que va además
del olor de las flores, lo que va además
del sol abriendo las mañanas entre nubes
que parecen de cierta forma intransponibles,
lo que va además de los musgos creciendo
em tejados abandonados, lo que va
además de las sombras que se encuentran


o tamanho impensável das flores

o tamanho impensável das flores
prende-me ao chão

e não serve de nada encontrar um lugar
onde possa ser outra coisa qualquer

el tamaño impensable de las flores
me agarra al suelo

y no sirve de nada encontrar un lugar
donde pueda ser cualquier otra cosa


Existimos de forma concisa

Existimos de forma concisa

num gomo de laranja, no feixe
de luz oblíquo ao parapeito da janela,
nas superfícies das paredes que sobem
até ao tecto da casa, no vidro outrora
e na gota de chuva e quando cessa a chuva
no troar das andorinhas, existimos de forma
concisa

não tendo o mundo outra forma de existir

Existimos de forma concisa

en un gajo de naranja, en el haz
de luz oblicuo al parapeto de la ventana,
en las superficies de las paredes que suben
hasta al techo de la casa, en el vidrio otrora
Y en la gota de lluvia y cuando cesa la lluvia
en el tronar de las golondrinas, existimos de forma
concisa

no teniendo el mundo otra forma de existir

[...]

Sandra Costa
[Tradução de Eva Lacasta Alegre]

[Poemas publicados na antologia Poema Poema. Antología de la Poesía Portuguesa Actual, in «Aullido. Revista de Poesía n.º 15», Uberto Stabile Editor, 2006].