sexta-feira, 1 de março de 2019

Sobre «Untitled» III

Herbert List, Lemonade Stand (Capri), 1932.

Apodera-se de ti o ofício do Verão.

Enquanto houver limões sobre a bancada
de madeira, água e açúcar para manter
o equilíbrio entre o que vês e o que escreves,
e uma colher para que um leve tinido
tudo trespasse de mar e melancolia,
deixarás por aqui um rasto a margens
e a tardias esperas.

Crês que a ilha também pode ser um lugar
onde as histórias de amor
se apresentam em segundo plano.

Sandra Costa, «untitled», volta d' mar, 2017.


‘UNTITLED’ de Sandra Costa
ou “esse inaudível som da melancolia” | Elisa Costa Pinto

Este livro admirável reúne 24 poemas inspirados em outras tantas fotografias de autor identificado, a preto e branco. Num processo há muito utilizado por outros poetas que escolheram a fotografia, mas também a pintura, a escultura, a música… como ponto de partida para a sua escrita, Sandra Costa colhe a inspiração em belíssimas imagens que, ao invés de se constituírem como retratos do real, correspondem a instantes inscritos no tempo, cortes sincrónicos numa encenação mais sugestiva do que reveladora, sublinhada pela distanciação dada pela ausência da cor.
Num multiplicado jogo de representação – a escrita sobre uma outra escrita -, Sandra Costa colecciona as fotografias, “sedimentos de uma vã imortalidade” e tece a sua poesia, como se o tempo fixado em cada imagem que sobreviveu à catástrofe da efemeridade pudesse ser recuperado pela palavra poética. Instaura, desta forma, uma nova existência dos momentos resgatados, numa paciente e melancólica captura de signos vitais - humanos e vegetais - suspensos em cenografias depuradas, nas quais a marca humana se desenha, delicadamente, no olhar estendido pela rua, insinuado através da janela, indagador de ocultações.
É todo um mundo elemental, ora reduzido por esse olhar, ora expandido pelo pensamento, aquele que se ergue em cada poema.
“Constrói o poema como se esta pudesse ser uma / outra estrada, um outro rio” é o programa inaugural deste livro raro, reunificador de desenhos da memória e de geometrias da “luz do dia” e da “luz dos objectos quotidianos”, de sombras e de penumbras, de “folhas mortas dos plátanos”, “o último eflúvio da flor”, o “ramo da cerejeira suspenso”, a “maçã no parapeito da janela”, os “limões sobre a bancada”.
Ora, é justamente este ofício de recolha e captura das pequenas coisas que apazigua a solidão, o medo, a espera, a frágil ruína de um mundo onde os vestígios da guerra se insinuam, imperceptíveis. E porque “as sombras estão dispostas / como se não fossem sombras mas apenas / o tempo que resta quando entre a palavra / e o esquecimento se instala a penumbra / ou a solidão”, só o poema, perscrutador e atento à respiração e ao gesto oculto, resolve o mistério do mundo.
É esta a iluminação que vibra na belíssima poesia de Sandra Costa, um fio de voz indagador e musical, um “inaudível som de melancolia”.
[SANDRA COSTA, ‘UNTITLED’, ed. Volta d’mar, 2017]

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