segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Epigrafia #12

«Eu cantei este amor sem que soubesses
[…]
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.»

Fernando Assis Pacheco, 'Cuidar dos Vivos', Coimbra,
Cancioneiro Vértice, 1963.

Num lugar que não existe,
tão próximo do mar quanto possível,
escrevo o último poema do ano
sem que saibas que o estou a escrever.

Sento-me rente ao derradeiro precipício
da tarde como se não tivesse vertigens.

Aliso a saia que não uso há mais de vinte
anos para que nenhum vinco gesto alusão
fique por compor.

E deixo que o vento revolva tudo o mais que
em mim existe: uma flor súbita nos cabelos,
o mais frágil e hesitante botão da blusa,
a forma como os meus dedos pronunciam
em surdina a solidão e, por fim, o que resta
de um sorriso, o que fica de sagrado do amor,
num rosto inesquecível que não é o meu.

Neste lugar que não existe,
escrevo-te o último poema do ano
e não saberás nunca que to estou a escrever.

[Sandra Costa]

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