O canto da melancolia
Sobre
o livro Untitled, de Sandra Costa (s. l., Volta dʼMar, 2017)
[texto
lido na livraria In-Libris, no Porto, a 18 de Fevereiro de 2018, na presença da
autora]
João
Paulo Sousa
Na complexa história das relações entre as artes verbais e as visuais, há um momento particularmente importante, que me proponho recordar aqui, por razões que deverão tornar-se claras mais adiante. Ancorado no século XVIII, mais precisamente em 1766, esse momento consistiu na publicação de uma obra, hoje célebre, intitulada Laokoön, da autoria do crítico e dramaturgo alemão Gothold Ephraïm Lessing. Procurando definir fronteiras claras entre a pintura e a poesia – questão que, com manifesto prejuízo desta última, nunca tinha sido possível concretizar –, Lessing conseguiu definir critérios precisos para libertar a escrita lírica de uma terrível sujeição de séculos, durante os quais fora quase sempre considerada uma arte menor, quando comparada com a representação visual. De uma forma contundente, que o Romantismo posterior consagrou, e de que a nossa Modernidade é ainda devedora, Lessing defendeu a capacidade da poesia de fundir duas imagens numa só, aliando traços negativos e positivos, assim prolongando o que alguns – poucos – já tinham tentado demonstrar, como foi o caso do italiano Jacopo Mazzoni, que, à saída do Renascimento, no século XVI, ousara sustentar a superioridade da poesia sobre a pintura, baseado na ideia de que apenas a primeira se encontrava apta a dar a ver o invisível.
Não pretendendo aqui questionar ou
apoiar estas perspectivas, contento-me em proceder à sua invocação, por
considerá-las especialmente pertinentes para a abordagem de um livro de poesia
que começa por se apresentar de um modo algo paradoxal. Com efeito, como
classificar de outro modo este objecto que temos hoje ao nosso dispor, quando
confrontamos atentamente o seu exterior com o seu interior? Ao primeiro
contacto, deparamos com uma estimulante quebra das nossas rotinas de
manuseadores de livros, pelo simples facto de a capa nos mostrar uma imagem –
uma belíssima fotografia, a preto e branco –, sem nenhuma palavra. Temos de o
virar, para, na contracapa, descobrirmos, sobre um fundo negro – que nos surge
como uma negação da imagem, uma fotografia por revelar –, o título (e não surpreende
que o título se dê a conhecer também como uma negação de si mesmo, como um
apagamento da palavra), o nome da autora e a identificação da editora, em suma,
o que esperaríamos ter encontrado no lado oposto. Ora, o paradoxo de que falei
reside no facto de o livro, no seu interior, se apresentar exactamente na forma
inversa, ou seja, como um conjunto de poemas que se reportam a fotografias a
preto e branco, sem que elas, no entanto, estejam presentes. Começámos,
portanto, pela imagem sem palavras, para chegarmos às palavras sem imagens.
Tal proposta, como todos
compreendemos, só se tornou possível porque a poesia soube, em devida altura,
libertar-se da já referida sujeição em relação à imagem, eventualmente
adquirindo a tal capacidade de dar a ver o invisível. Não andamos longe, ao
invocar Jacopo Mazzoni, da perspectiva com que a voz poética deste livro aborda
as imagens que primam pela ausência. Pouco importará a sua efectiva existência
(das imagens) fora da realidade que é este livro enquanto obra de arte,
porquanto tudo o que o sujeito poético quer encontrar é um ponto de apoio para
ir além delas, seja pela imaginação, seja pela consciência aguda da passagem do
tempo. É assim que, logo no poema de abertura, como se aí tivessem de ser
apresentados os indispensáveis protocolos de leitura, é ensinado ao
destinatário o que ele deve ver quando olha, sendo desse modo assinalado o
indeciso ponto de transição entre uma realidade supostamente objectiva e uma
outra percepção do mundo, que se pretende alcançar. Trata-se, pois, de uma
caminhada «em direcção ao que existe para além da nublada / perspectiva das
coisas» (p. 7).
Para que cada poema consiga
encontrar – ou, pelo menos, sugerir – o referido ponto de transição, torna-se
imprescindível que ele esboce as linhas essenciais para a configuração mental
de uma imagem visual, oscilando depois – como quem pisca os olhos e julga
passar a ver algo ligeiramente diferente –, com suavidade, para outro plano.
Atente-se, por exemplo, no poema da página 13, em que nos é dito que uma mulher
«se senta e cruza as pernas como se aquele momento fosse apenas mais um retrato
sobrevivente à guerra» (p. 13). A partir da comparação, a realidade oscila, e
não mais reencontraremos a descrição fotográfica; segue-se um casaco que
«revela o que encobre», «mãos [que] observam o silêncio» e, sobretudo, a
«trajectória que o tempo percorre entre os pensamentos mais secretos e as
circunstâncias que teimas em imaginar» (p. 13). Com uma ampla destreza
construtiva, a poesia de Sandra Costa abeira-se aqui do indizível, mas detém-se
à entrada do seu refúgio, com um pudor não isento de melancolia.
A este pudor poético associa-se a já
citada capacidade literária de juntar duas imagens numa só, assim superando o
seu hipotético referente visual, como ocorre, por exemplo, no poema da página
21, quando, após se destacar a necessidade explícita de manter o equilíbrio
entre o que se vê e o que se escreve, é afirmada a crença em «um lugar / onde
as histórias de amor / se apresentam em segundo plano» (p. 21). São os mesmos
dois planos que se impõem no extraordinário poema da página 17, em que a
«montra repleta de fruta» aponta para o real objectivo da fotografia ausente,
enquanto «o clarão / da guerra que vacila no capacete» de um rapaz (uma luz aí
reflectida?), devidamente associado ao ano com cuja referência principia o
poema – 1940 –, nos lembra com uma invulgar delicadeza, quase um pedido de
desculpas, a Segunda Guerra Mundial.
Esta voz poética possui também,
portanto, uma forte consciência histórica – da qual, no entanto, não faz alarde
–, o que não há-de surpreender, se tivermos em conta a decisiva importância do
tempo ao longo de todo o livro. O confronto entre a meteorologia e a cronologia
abre as portas a uma ideia de abandono, de vazio, de ausência humana, como no
poema da página 20, em que julgamos deparar-nos com um cenário a que chegámos
demasiado tarde, onde só restam os vestígios do que já não existe. O mundo
parece preservar-se para além da presença humana, mas com a memória da sua
passagem, ecoando parte de um célebre verso do poeta de origem russa Joseph
Brodsky («Life without us is, darling, thinkable»). Esta memória pretende,
assim, ser um sinal da resistência à usura, ao envelhecimento, à destruição; o
tempo, na poesia de Sandra Costa, é «memória, perdurando nas pedras, / nas
paredes, nas portadas», ou «um eco que não incomoda, encostado / à superfície
da realidade» (p. 25), é, em suma, a consciência melancólica da nossa
Modernidade.
Não nos deixemos enganar por esta
invocação. Como bem sabemos, ao contrário da depressão, que afunda aqueles que
por esta se deixam agarrar, a melancolia é uma tristeza construtiva.
Melancólico é o anjo da história proposto por Walter Benjamin, a partir de um
quadro de Paul Klee: de costas voltadas para o futuro, com as asas abertas, o
anjo descrito pelo ensaísta alemão na sua nona tese sobre o conceito da
história é irresistivelmente empurrado naquela direcção, por um vento que sopra
do passado, onde se acumulam ruínas sobre ruínas; cada vez se distanciando mais
do paraíso, cegamente impelido para o futuro, por força do vendaval que o
impede de fechar as asas, ele é incapaz de desviar os olhos da catástrofe
infindável em que o passado se tornou para si. Descrever, porém, essa desolação
é já um modo de a superar; a arte, como os clássicos há muito nos ensinaram,
tem essa extraordinária faculdade de tornar até agradável o que, na chamada
vida real, muito dificilmente sequer aceitaríamos. Por isso, a atenção
detalhada do sujeito poético deste livro aos mais ínfimos detalhes é também a
evidência de um processo estético que ambiciona suavizar a infelicidade, dando
a conhecer «a respiração das sombras, no percurso entre / dois sintomas da
fragilidade do mundo» (p. 31).
Como se provindos, pois, do anjo da
história, os poemas de Sandra Costa compõem um canto não isento de melodia, mas
sobretudo sustentado por um timbre cuidadosamente delicado, suave, como um eco
que já não sabemos bem se resiste no ouvido ou apenas na memória. São, como nos
é dito a certa altura, «versos que perduram enquanto / a eternidade existe por
um momento» (p. 33). O tempo é provisoriamente congelado – pelo menos, enquanto
«durar o poema» (p. 30) –, milagre que, até hoje, apenas ao alcance da arte se
mostrou, e a nós, privilegiados leitores, é assim oferecida a possibilidade de,
se o quisermos e merecermos, nos deleitarmos com uma invulgar música celestial,
a que provém deste belíssimo livro, lapidarmente classificada, nas suas últimas
palavras, como o «inaudível som da melancolia» (p. 35).
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