sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Epigrafia #10


«O teu rosto torna as coisas simples, […]»

Egito Gonçalves, de "O Pêndulo Afectivo”
in Apeadeiro 1, 2001.

O rosto que sou quando termino
de percorrer o efeito de espelho
nas tuas mãos.

As fissuras que devolvo pela manhã
aos lugares intactos da tua ausência.

A respiração que me permito
na espessura vagarosa do primeiro
poema que um dia se cobrirá
com a tua voz.

Em vez do meu rosto, 
esse rosto que sou.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Epigrafia #9 (Versão 2)


«[U]m raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho (...) o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?»
Herberto Hélder, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim.



As janelas da casa corrompem o silêncio
sob o qual todas as memórias oscilam
entre a incerteza de alguma vez terem existido
e a incredulidade quanto à fórmula como
subsistem na inclinação do sol sobre o horizonte,
esse erro que os dias incessantemente procuram
repetir. No lugar da penumbra, velhos papéis,
folhas soltas, sustêm a caligrafia da morte
e nenhum golpe de vento, maresia, raio oblíquo
penetrará nesta paisagem onde tudo é precipício.
Reatas o que se perdeu no fulgor que subsiste
em cada sombra ainda que só a imitação de um
espelho pela casa evite que o teu rosto desapareça. 

[Sandra Costa]

domingo, 25 de novembro de 2018

Epigrafia #9


«[U]m raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho (...) o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?»
Herberto Hélder, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim.



A janela da casa é toda uma composição
de espera. O travo da melancolia em cada
poro estalado da madeira. A entoação
das insónias na sujidade dos vidros. Sombras,
vigílias, noites que se extinguem, estendendo-se
sem sobressaltos, em cada grão de poeira
que se acumula entre os dedos,
em cada pressentimento que não surge.
Não existem espelhos, só paisagens.
Não é só o teu rosto que não reconheces.
Que vulto é aquele que se aproxima do precipício
que é cada palavra que arrefece nas tuas mãos?

[Sandra Costa]


Fotografia de JOSEPH CHARROY.