quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Polaroids - I










Polaroid de Andrei Tarkovsky.
Daqui.


«Polaroids»

I

Pressinto que o silêncio pode ser uma forma de combater a imobilidade. Coloco em cima da mesa a imagem da casa que tem uma tonalidade rosa velho nos pedaços de parede que ainda não caíram. A casa onde as fendas não começam nem acabam e os restantes pedaços de parede parecem sugerir que todos os poemas têm algo de abandonado. A porta principal permanece com um cadeado mesmo quando levanto os olhos para o céu e os vidros das janelas talvez nunca estivessem lá. Um dia, hei-de parar o carro em frente à casa e tentar perceber se o que nela me encanta é a luz trémula que imagino sobre os soalhos ou a certeza que não há uma explicação para o invisível.

Sandra Costa



[série de textos/poemas, chamem-lhe o que quiserem, que não foi escrita para as belíssimas polaroids de Tarkovsky]

domingo, 25 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 25


Poema de Natal

«… - o homem é um Deus que se ignora.»

Antero de Quental, Prosas da Época de Coimbra


Chegados a este ponto em que a história
se repete, a esta hora da noite em que sobre
os telhados se derramam os últimos poemas,
a esta rara tradição de amparar um coração
mortal no interior da tempestade, a este
fragmento de luz     expiação que não nos
pertence ou a este meu silêncio que tudo
cobre como um cântico,

mostra-me o lugar dentro de mim
onde está esse deus que ignoro.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

sábado, 24 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 24


Poema de Natal

Imaginas um outro cântico a Isabel,
exultando o que há de imperfeito em ti,
demorando-se as palavras em tudo
aquilo que ainda não se cumpriu e que
se estende para além do teu braço
que alguém dispersou em música.

Imaginas um outro cântico mas
regressas às mesmas palavras de um deus
tão antigo quanto novo que a voz velha,
cansada e trémula de Joana esqueceu,
ao fundo da cozinha:

ele encheu de bens os famintos e despediu
os ricos de mãos vazias.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 23


Poema de Natal

Cai a noite e as ruas ficam repletas

de escuridão e vazias de gente. Por cada
casa que passas brilha o que resta de uma
noite milenar. Imaginas a alegria dos
reencontros principalmente quando a
distância é apenas a do abraço. Decoras
uma música atrás de outra como se
talvez fosse importante manter-nos
em vigília. E quase de repente acreditas
que a infância ainda é um mapa do
tesouro que esconde as mais complexas
explicações do mundo.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 22


Poema de Natal

Sento-me ao teu lado, junto à lareira,
e deixo que tudo à volta se apague
como nos velhos tempos em que havia
um reino onde tudo era possível e as noites
eram guiadas por estrelas que sabiam
que o mundo é feito de lugares inesperados.

Sento-me mais perto e abro o álbum
na imagem exacta de como te recordo,
ao meu lado, junto à lareira, numa espécie
de abandono que era somente uma forma
de me dizeres que o mundo, em certas noites
de excepção, é feito de poemas

mais espessos que a água*.  


* Verso de Luís Quintais.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 21


Poema de Natal

Não há nada a acrescentar à revelação da luz

sobre as palavras que ficam por dizer, na noite
que há-de vir. Nada a acrescentar ao desenho
de um regresso às sombras projectadas sobre
os umbrais das portas à matéria do mundo
quando se apagam as formas daquilo que
poderia vir a ser um poema ou uma flor.

Nada a acrescentar. No entanto acrescentas
a condição mortal de um país assim onde
as palavras não servem para aumentar a surdina.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 20


Poema de Natal


Haveria de naquela noite te pedir um poema
sobre romãs nozes o lume a crepitar na lareira
e a matéria das sombras que explicam que a luz
que resta sobre a mesa é a mesma que naquela
outra noite se debruçou sobre a natureza
humana de um deus assim tão invisível
que é tão só o vestígio de mais um poema.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 19


Poema de Natal


Muda-se de estação e a música já é outra,

o Tannenbaum em cadência de jazz, como
se hoje só o Charlie Brown soubesse 
significado de uma estrela em terras de David,
como se hoje ainda precisássemos de ouvir
de novo a voz do pequeno Linus narrar a história
de Lucas, como se hoje ainda fosse possível
acreditar num tempo em que o importante
era acontecer-nos como homens. 

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


domingo, 18 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 18


Poema n.º 18. [Relatório sem número em dia
de mudança de estação]

1.
A data não corresponde ao dia do poema.

2.
Pouco depois das quatro da tarde, os últimos
raios de sol tombam sobre as varandas viradas
a oeste e criam sombras como escombros
em tempo de fins e começos.

3.
De Bach a Tom Waits, a oratória é a mesma:
uma rapariga fica grávida e alguém conta
uma história para que à sua volta ainda
haja futuro.

4.
Um poema é uma casa onde todas as palavras
são possíveis e até um milagre pode acontecer.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]




sábado, 17 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 17

 

Poema de Natal

Em Messina, fugindo da morte, Caravaggio
pintou um óleo sobre tela para a chiesa
dei Padri Cappuccini.

No estábulo, segundo as palavras de Lucas,
a anunciação faz-se aos pastores, para que
tudo seja simples e sob uma diagonal de luz
a percepção do sagrado surja nos pormenores
dos rostos escurecendo tudo.

Sobre a palha, a Virgem, de túnica vermelha,
segura a criança com maternal apreensão:
na doce e inesperada adoração de quem chega
pressente-se a natureza morta de um desígnio

em tons de branco, castanho e negro.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]




sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 16










Poema de Natal


Lc 2, 1-20. Perturba-me saber que tudo começou
numa noite iluminada, ao mesmo tempo que
se contavam uns e outros pela primeira vez,
e que por isso não havia lugar para eles numa
hospedaria. Perturba-me saber que a mãe
envolveu o filho em panos e que o recostou
numa manjedoura e que ainda fosse necessário
um anjo para anunciar tão grande alegria a quem
guardava os seus rebanhos durante a noite.
Perturba-me saber que só depois se divulgou a
notícia e ainda hoje tenhamos de procurar outro
livro para ouvir contar a história toda e que esta,
talvez, ainda esteja por começar.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 15



Poema de Natal

Na entrada da casa, suspenso por um fio
fragilmente pendurado no óculo da porta,
todos os anos coloco um anjo de túnica vermelha
debruada a madeira, com cabelos de ráfia
despenteados e contornos de asas semelhantes
ao esboço dos poemas que ainda não existem:

por uns dias tudo é sobressalto e uma estrela,
segura na sua mão direita, anuncia-me a mim mesma.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 14


Poema de Natal

Acreditas que as palavras não são águas estagnadas
mas um templo iluminado de gente para que o
silêncio faça ainda mais sentido em noites como esta.

Acreditas que assim desarrumamos o tempo da infância,
que vem e volta e cerca-nos como se fosse o vento
e prega-nos uma rasteira junto às vozes que já desapareceram.

Acreditas que aqui, dentro do poema, o mundo
reescreve-se de musgo de incenso de um rumor a sinos
que se ouvem à distância - imagens muito antigas

que só existem no abandono das vigílias.


Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 13


Poema de Natal

David escreveu um cancioneiro em surdina,
à beira-rio, quando tudo principiava
com a neblina e sabia a lenha e a tangerinas.

David sabia que de mãos dadas é possível
acender de novo a consoada do mundo
e ver num sótão num porão num intruso
o que há em nós de mais profundo.

David deixou um último poema para que fosse
o primeiro e assim desenhou na paisagem
uma vigília sob o céu do futuro:

vamos ver se vai ser desta vez que ele nasce
entre ciprestes sem a sombra de um muro.


Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

Nota: Poema dedicado a David Mourão-Ferreira, abusando das suas palavras do Cancioneiro de Natal.


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 12


Poema de Natal

Escreves um poema e regressas sempre
ao tempo da casa da avó, ao tempo
em que colhíamos o musgo numa
daquelas tardes cada vez mais pequenas
de Inverno e ficávamos a ver como
num canto da velha cozinha de repente
nascia uma verdejante colina de Belém.

[talvez naquele tempo já soubesses
que um regresso é a forma mais antiga
de chegar ou de uma estrela acontecer]

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


domingo, 11 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 11


Poema de Natal

De súbito, ouves uma voz no interior da casa
tão nítida como a noite anunciada. De volta
da escuridão, ergues o olhar da moldura onde
se escondem os dias que já correram como rios
e cobres os lábios com um sorriso tão secreto
como crente.

Naquele tempo, a imagem improvável de um deus
que nasce era a de um nome que regressa
como um gesto mil vezes repetido.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


sábado, 10 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 10


Poema de Natal

Encosto o rosto à janela iluminada da casa
e enquanto me demoro a contemplar os contornos
que estão para além do efeito de condensação,
acredito que há dois dias se deu a chegada do Inverno,
que as magnólias que floriram antes de Janeiro
fui eu que as abri com um verso escrito debaixo
de um concerto para violino de Beethoven
e que o maior desígnio para uma noite como esta
é o de dizer-te que o menino hoje és tu, pai.

Dezembro de 2011

[Sandra Costa]

_______________________





sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 9


Poema de Natal

Primeiro a noite cai, aguardas que os outros cheguem
e te chamem pelo nome, imaginas o contorno das palavras
que se confundem com o amor e a solidão
e escreves à mesa o sabor dos versos mais antigos.

Primeiro a noite cai e o que fica para além do frio
e da escuridão é uma casa iluminada como um templo.


Dezembro de 2011


[Sandra Costa]


quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 8


Poema de Natal

O avesso é uma casa abandonada onde as estrelas
não atravessam o umbral de um telhado quase
desaparecido: o silêncio não é génese nem contemplação,
a noite não responde ao toque nem se ilude
com remorsos ou outras formas de dizer que não
somos deuses e os aromas que persistem nas
hastes da memória, que é como quem diz naquelas
duas colunas que outrora foram um espaço
carregado de luz, são os de uma ausência sombria
e imóvel que é o fim de tudo e o princípio de nada.

8 de Dezembro de 2011

[Sandra Costa]


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 7


Poema de Natal

Este ano não escrevi um poema de Natal.
Os lugares onde as palavras começam
não embaciam os vidros das janelas no Inverno
ainda que o frio seja sempre o princípio
de uma candeia que se acende pela primeira vez.

Para que nem tudo pareça um sobressalto,
dou uma explicação sobre o que é isto
do silêncio, das estrelas que se tornam possíveis
apesar de furtivas, do tempo em que a terra
sabia a tâmaras e a mel:

apago o último verso para que
o fio da noite seja tão visível como o amor.

Dezembro de 2010

[Sandra Costa]


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 6


Poema de Natal

Repetem-se as mesmas palavras de sempre. Os
mesmos gestos enfeitados pelas ruas. A cor dos
olhos como a cor dos anjos que ficam, à vez,
esquecidos no fundo da caixa. As estrelas que
não cabem sobre as coisas todas que passam. Os
mortos que se esquecem. O amor que não volta.

(aguardas os raros momentos em que crês

e o mundo é de novo aquela noite que não existe
onde a luz trepa pelo tronco das árvores e as
palavras escorrem das paredes como dos calendários)

Dezembro de 2006

[Sandra Costa]


segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 5


Poema de Natal

No começo não havia noites, só uma amálgama
de cores ainda por definir como a incerteza
das sombras sobre um verso inacabado. Depois

alguém inventou a escuridão caiada de estrelas
e um silêncio coberto de sol ou outra forma de dizer
que há sempre dois caminhos para quem não

quer ficar a ouvir o rumor perfumado das magnólias
quando abrem. Depois veio a noite dos reis magos,
do menino e da manjedoura, da última vez em que

fomos crianças. E vieram as noites de Dezembro,
onde o tempo passa sem fazer sombra e já esqueceste
em que lugares crescem os musgos. No fim, só restará

uma noite, aquela onde regressas ao segredo do poema.

Dezembro de 2005

[Sandra Costa]


domingo, 4 de dezembro de 2011

Da série «Manual da vida breve» - II

4.

Passo muitas vezes pela casa em ruínas.
Nada sei sobre a sua história mas hesito
em classificá-la como abandonada.

Tanto me agrada pensar nela como
um lugar que já não existe como enumerar
os pormenores que ela agora é:

um dia alguém assomou naquela varanda sem
ferrugem, conservando uma mão na madeira
da porta, e a vertigem terá sido tão fugaz

e tão intensa como a dor.

Agora as janelas têm vidros partidos
e as paredes perdem em definitivo aquele
tom rosa seco que se assemelha à solidão.


[Sandra Costa]


Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 4


Poema de Natal

Apago as mãos com o regresso das noites silenciosas,
proponho esquecer-me do inverno e das palavras
que ainda sabem a crepúsculos de fogo e abro

um pão com aroma a mel e a misteriosas claridades.
Pela casa dissolvem-se as sombras nomeando outros
tantos mundos e as histórias repetem-se na boca

das crianças como as estações nas folhas das árvores.
Tudo se passa como sempre: os olhos escutando
o invisível rumor que nos sustenta.

Dezembro de 2004

[Sandra Costa]


sábado, 3 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 3


Poema de Natal

Percebi que o silêncio se pode anunciar como se fosse um odor. E sem me dar
conta descobri que posso ganhar longos momentos de imobilidade.

Tonino Guerra, Una foglia contro i fulmini,
Maggioli Editore, 2006. [Tradução Sandra Costa]

Quando partes em direcção à casa que já foi tua,
o frio intenso granulando aquela noite de outros
tempos, dás a mão à distância que te separa da
infância e inventas que o amor vem sempre
um pouco mais tarde. A qualquer momento
chegas à porta que lá em casa se diz de entrada,
espreitas pelo vidro embaciado e acreditas
que existem pequenos mistérios que ao contrário
de todos os outros não se escondem. Encontras
a chave como se ainda fosse tua, rodas a maçaneta
com um jeito para a direita, antecipando que a porta
só abre com gestos antigos, e ficas à espera
que o silêncio, se calhar todo o silêncio do mundo,
se quebre.

[Sandra Costa]


sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 2


Poema de Natal

A primeira imagem que tenho
é do frio – dos casacos pendurados
uns por cima dos outros na sala da eira,
do fumo perfumado da aletria sobre
a mesa e do lume da lareira onde deixava
o sapatinho antes de ir dormir.

Depois, um mistério qualquer acontecia
durante a noite – o frio faz crescer uma haste
de silêncio pelo mundo e sem sobressalto
as estrelas aproximam-se dos versos
que não existem.

Dentro das histórias que ouves
desde a infância, a última imagem
é de um segredo que só agora começa.


[Sandra Costa]


quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Calendário do Advento em forma de poesia - Dia 1


Poema de Natal

Alguma coisa está para acontecer?
Amadeu Baptista, Poemas de Caravaggio, Cosmorama, 2008.

No princípio, guardava-se o trabalho com
o silêncio acumulado. A luz era a do Inverno –
uma neblina pousada sobre os botões das
magnólias – e as pedras estavam cobertas
de musgo como se ainda se acreditasse
que nos baldios o tempo fosse da espessura
da infância e que o que ficava dos frutos na boca
eram segredos difíceis de pronunciar.

No princípio, o que acontecia era uma espécie
de regresso – à semelhança do que compreendeste
serem as primeiras árvores, acrescentava-se um grito
de amor à escuridão.


[Sandra Costa]


Da série «Manual da vida breve» - I

1.

não sei o que é o tempo, o amor,
as decisões adiadas, a esconderem-se
da última imagem que morre

quando se me acaba um poema

só procuro guardar a infância, bocados de
solidão, as magnólias caindo,
a despedirem-se da Primavera que chega


[Sandra Costa]



De regresso ou talvez não.

Veremos o que isto vai dar, se é que vai dar em alguma coisa. O objectivo é voltar a escrever. Ou talvez não. Para não custar tanto (diga-se tempo) começa-se por recuperar o muito pouco que entretanto ficou depositado nas gavetas.