quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Auto-retrato



Era pelas palavras que ela se revelava
mas era também a escrita que lhe concedia
um esconderijo: cada poema era um espelho
e um muro.

Em cada diálogo anunciava-se um encontro
possível, mas o rosto que a definia
não era madrugada nem horizonte pelo que
o coração lhe pulsava como um túmulo
onde a solidão ia ocupando 
o seu lugar.

Cada verso escrito era, assim, um pátio
e um exílio: cobria-se de uma camada
de silêncio cada vez maior até que
um dia restará apenas, sobre a mesa
onde só ela se sentava junto ao mar,
essa película tão sensível quanto inerte
que, afinal, era a sua pele.

[Sandra Costa]

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Sobre «Untitled» II

Josef Sudek, The Window of My Studio [series], 1940-1954.
.

A janela do estúdio está aberta. Por um instante,
aqueles dois mundos desviam-se do reflexo
que um é do outro e conectam-se. Definem-se,
dissolvendo-se. Não há interior e exterior.
Um plano onde a chuva escorre e outro onde
o ar é condensação. Não há o homem e um duplo
que se contempla, essa árvore de torso retorcido,
defeituoso, que o tempo, só por milagre, cura
quando floresce a Primavera.

As vidraças nada separam, nada aproximam.
Dois mundos, as estações que se sucedem,
o dia e a noite afectados pela luz interior e exterior,
o que é inteiramente abstracto à superfície
e delicadamente lírico, emotivo, quase espiritual,
no olhar que se prolonga.

Por tudo isto, são pormenores o muro e as casas
para além do jardim ou a composição de natureza
morta no parapeito de madeira. O que importa
é a janela do estúdio, que está aberta, e como
a indeterminação, esse movimento que o
mundo respira, ali se revela.

Sandra Costa, «untitled», volta d' mar, 2017.


Sandra Costa (n. 1971), in Untitled. A estreia em 2002, com Sob a Luz do Mar (Campo das Letras), revelou uma voz transparente, contida, depurada. Untitled (volta d’mar, Dezembro de 2017) persegue os caminhos da luz, desta feita em diálogo com fotografias a preto e branco de autores diversos (Elliott Erwitt, André Kertész, Vivian Maier, Dorothea Lange…) A écfrase processa-se a partir de uma complexa ralação de olhares, o do autor da fotografia e o da poeta que a contempla. O poema surge desta relação como uma imagem no decorrer do processo de revelação, da indefinição nublada e sombria das formas até à sua absoluta definição. O título do primeiro livro já havia assumido a relevância da luz nesta poesia, agora novamente sublinhada por uma noção do poema enquanto reflexo. Mantendo-se a natureza no lugar da paisagem preferencial, ela surge enquadrada por uma contemplação afectada pelo silêncio e pela solidão. Os jogos de luz permitem-nos ainda vislumbrar em alguns versos um tom nostálgico que resiste à melancolia, inclinando-se mais para uma noção de espera onde podemos adivinhar certa forma de fé na beleza: «Nesse instante, compreendes: o único caminho / possível até à madrugada insubmissa / também se faz de esperas, // ou de um detalhe que nos salva» (p. 18). Também por isto, podemos dizer que esta é uma poesia que aparece em contramão com as tendências dominantes do seu tempo. [Henrique Manuel Bento Fialho, no blogue Antologia do Esquecimento]


Sobre «Untitled» I

O canto da melancolia

Sobre o livro Untitled, de Sandra Costa (s. l., Volta dʼMar, 2017)
[texto lido na livraria In-Libris, no Porto, a 18 de Fevereiro de 2018, na presença da autora]
João Paulo Sousa 

Na complexa história das relações entre as artes verbais e as visuais, há um momento particularmente importante, que me proponho recordar aqui, por razões que deverão tornar-se claras mais adiante. Ancorado no século XVIII, mais precisamente em 1766, esse momento consistiu na publicação de uma obra, hoje célebre, intitulada Laokoön, da autoria do crítico e dramaturgo alemão Gothold Ephraïm Lessing. Procurando definir fronteiras claras entre a pintura e a poesia – questão que, com manifesto prejuízo desta última, nunca tinha sido possível concretizar –, Lessing conseguiu definir critérios precisos para libertar a escrita lírica de uma terrível sujeição de séculos, durante os quais fora quase sempre considerada uma arte menor, quando comparada com a representação visual. De uma forma contundente, que o Romantismo posterior consagrou, e de que a nossa Modernidade é ainda devedora, Lessing defendeu a capacidade da poesia de fundir duas imagens numa só, aliando traços negativos e positivos, assim prolongando o que alguns – poucos – já tinham tentado demonstrar, como foi o caso do italiano Jacopo Mazzoni, que, à saída do Renascimento, no século XVI, ousara sustentar a superioridade da poesia sobre a pintura, baseado na ideia de que apenas a primeira se encontrava apta a dar a ver o invisível.

Não pretendendo aqui questionar ou apoiar estas perspectivas, contento-me em proceder à sua invocação, por considerá-las especialmente pertinentes para a abordagem de um livro de poesia que começa por se apresentar de um modo algo paradoxal. Com efeito, como classificar de outro modo este objecto que temos hoje ao nosso dispor, quando confrontamos atentamente o seu exterior com o seu interior? Ao primeiro contacto, deparamos com uma estimulante quebra das nossas rotinas de manuseadores de livros, pelo simples facto de a capa nos mostrar uma imagem – uma belíssima fotografia, a preto e branco –, sem nenhuma palavra. Temos de o virar, para, na contracapa, descobrirmos, sobre um fundo negro – que nos surge como uma negação da imagem, uma fotografia por revelar –, o título (e não surpreende que o título se dê a conhecer também como uma negação de si mesmo, como um apagamento da palavra), o nome da autora e a identificação da editora, em suma, o que esperaríamos ter encontrado no lado oposto. Ora, o paradoxo de que falei reside no facto de o livro, no seu interior, se apresentar exactamente na forma inversa, ou seja, como um conjunto de poemas que se reportam a fotografias a preto e branco, sem que elas, no entanto, estejam presentes. Começámos, portanto, pela imagem sem palavras, para chegarmos às palavras sem imagens.

Tal proposta, como todos compreendemos, só se tornou possível porque a poesia soube, em devida altura, libertar-se da já referida sujeição em relação à imagem, eventualmente adquirindo a tal capacidade de dar a ver o invisível. Não andamos longe, ao invocar Jacopo Mazzoni, da perspectiva com que a voz poética deste livro aborda as imagens que primam pela ausência. Pouco importará a sua efectiva existência (das imagens) fora da realidade que é este livro enquanto obra de arte, porquanto tudo o que o sujeito poético quer encontrar é um ponto de apoio para ir além delas, seja pela imaginação, seja pela consciência aguda da passagem do tempo. É assim que, logo no poema de abertura, como se aí tivessem de ser apresentados os indispensáveis protocolos de leitura, é ensinado ao destinatário o que ele deve ver quando olha, sendo desse modo assinalado o indeciso ponto de transição entre uma realidade supostamente objectiva e uma outra percepção do mundo, que se pretende alcançar. Trata-se, pois, de uma caminhada «em direcção ao que existe para além da nublada / perspectiva das coisas» (p. 7).

Para que cada poema consiga encontrar – ou, pelo menos, sugerir – o referido ponto de transição, torna-se imprescindível que ele esboce as linhas essenciais para a configuração mental de uma imagem visual, oscilando depois – como quem pisca os olhos e julga passar a ver algo ligeiramente diferente –, com suavidade, para outro plano. Atente-se, por exemplo, no poema da página 13, em que nos é dito que uma mulher «se senta e cruza as pernas como se aquele momento fosse apenas mais um retrato sobrevivente à guerra» (p. 13). A partir da comparação, a realidade oscila, e não mais reencontraremos a descrição fotográfica; segue-se um casaco que «revela o que encobre», «mãos [que] observam o silêncio» e, sobretudo, a «trajectória que o tempo percorre entre os pensamentos mais secretos e as circunstâncias que teimas em imaginar» (p. 13). Com uma ampla destreza construtiva, a poesia de Sandra Costa abeira-se aqui do indizível, mas detém-se à entrada do seu refúgio, com um pudor não isento de melancolia.

A este pudor poético associa-se a já citada capacidade literária de juntar duas imagens numa só, assim superando o seu hipotético referente visual, como ocorre, por exemplo, no poema da página 21, quando, após se destacar a necessidade explícita de manter o equilíbrio entre o que se vê e o que se escreve, é afirmada a crença em «um lugar / onde as histórias de amor / se apresentam em segundo plano» (p. 21). São os mesmos dois planos que se impõem no extraordinário poema da página 17, em que a «montra repleta de fruta» aponta para o real objectivo da fotografia ausente, enquanto «o clarão / da guerra que vacila no capacete» de um rapaz (uma luz aí reflectida?), devidamente associado ao ano com cuja referência principia o poema – 1940 –, nos lembra com uma invulgar delicadeza, quase um pedido de desculpas, a Segunda Guerra Mundial.  

Esta voz poética possui também, portanto, uma forte consciência histórica – da qual, no entanto, não faz alarde –, o que não há-de surpreender, se tivermos em conta a decisiva importância do tempo ao longo de todo o livro. O confronto entre a meteorologia e a cronologia abre as portas a uma ideia de abandono, de vazio, de ausência humana, como no poema da página 20, em que julgamos deparar-nos com um cenário a que chegámos demasiado tarde, onde só restam os vestígios do que já não existe. O mundo parece preservar-se para além da presença humana, mas com a memória da sua passagem, ecoando parte de um célebre verso do poeta de origem russa Joseph Brodsky («Life without us is, darling, thinkable»). Esta memória pretende, assim, ser um sinal da resistência à usura, ao envelhecimento, à destruição; o tempo, na poesia de Sandra Costa, é «memória, perdurando nas pedras, / nas paredes, nas portadas», ou «um eco que não incomoda, encostado / à superfície da realidade» (p. 25), é, em suma, a consciência melancólica da nossa Modernidade.

Não nos deixemos enganar por esta invocação. Como bem sabemos, ao contrário da depressão, que afunda aqueles que por esta se deixam agarrar, a melancolia é uma tristeza construtiva. Melancólico é o anjo da história proposto por Walter Benjamin, a partir de um quadro de Paul Klee: de costas voltadas para o futuro, com as asas abertas, o anjo descrito pelo ensaísta alemão na sua nona tese sobre o conceito da história é irresistivelmente empurrado naquela direcção, por um vento que sopra do passado, onde se acumulam ruínas sobre ruínas; cada vez se distanciando mais do paraíso, cegamente impelido para o futuro, por força do vendaval que o impede de fechar as asas, ele é incapaz de desviar os olhos da catástrofe infindável em que o passado se tornou para si. Descrever, porém, essa desolação é já um modo de a superar; a arte, como os clássicos há muito nos ensinaram, tem essa extraordinária faculdade de tornar até agradável o que, na chamada vida real, muito dificilmente sequer aceitaríamos. Por isso, a atenção detalhada do sujeito poético deste livro aos mais ínfimos detalhes é também a evidência de um processo estético que ambiciona suavizar a infelicidade, dando a conhecer «a respiração das sombras, no percurso entre / dois sintomas da fragilidade do mundo» (p. 31).

Como se provindos, pois, do anjo da história, os poemas de Sandra Costa compõem um canto não isento de melodia, mas sobretudo sustentado por um timbre cuidadosamente delicado, suave, como um eco que já não sabemos bem se resiste no ouvido ou apenas na memória. São, como nos é dito a certa altura, «versos que perduram enquanto / a eternidade existe por um momento» (p. 33). O tempo é provisoriamente congelado – pelo menos, enquanto «durar o poema» (p. 30) –, milagre que, até hoje, apenas ao alcance da arte se mostrou, e a nós, privilegiados leitores, é assim oferecida a possibilidade de, se o quisermos e merecermos, nos deleitarmos com uma invulgar música celestial, a que provém deste belíssimo livro, lapidarmente classificada, nas suas últimas palavras, como o «inaudível som da melancolia» (p. 35).