sábado, 23 de dezembro de 2017

Poema de Natal | Dezembro de 2017



Harry Clarke (1889-1931), Anjos (pormenor) 1924, National Gallery of Ireland



Poema de Natal

As telas foram encontradas, enroladas,
atrás do órgão da Igreja de Santa Maria,
em Haddington Road, Dublin. Deviam estar
nas paredes da Igreja mas, ali, de Harry Clarke
ficaram apenas os vitrais.

Serão dois anjos da Anunciação, em fundo
azul que alguém crê celestial, que sobressaem
neste pormenor sobre o qual assenta o poema.
As duas figuras trazem túnicas bordadas
com flores, sandálias romanas nos pés que
no primeiro vislumbre parecem descalços e
um olhar triste num perfil que se inclina
sob o peso das asas ou do mundo.

Um dos anjos segura uma flor branca,
talvez uma açucena e não lírios do campo,
porque este não é ainda o sermão da montanha,
enquanto o outro contempla, sem as ver,
as línguas de fogo que à sua frente pairam
mas não caem. O anúncio é de luz e de como 
esta tudo cobre, sobrepondo-se à tristeza.


Dezembro de 2017

[Sandra Costa]

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #7

«Trop naïf.», inexplicavelmente, a sua voz soara clara.
«Pardon?»
«Trop naïf.», não se recordava em que língua continuaram a falar. «Foi assim que me caracterizaram o primeiro quadro de Vollotton que vi. Era Premiers rayons
«Não conheço.», a voz dele tinha um timbre que lhe agradava, grave ainda que austero, mesmo quando era um lamento. A primeira qualidade física de um homem, para ela, era sempre a voz, mas não percebia porque tivera, ali, aquele pensamento, quando nem sequer tinham, ainda, trocado um olhar.
«Gostei tanto que fui procurá-lo para saber onde se encontrava exposto. Não o encontrei por pertencer a uma colecção privada mas foi assim que fiquei a conhecer Villa Flora.»
«Visitou-a?»
«Sim. Vim de lá ontem. Tenho imensa pena que todos estes quadros não estejam mais lá.»
«Eu também. Felizmente, ainda os pude ver no seu ambiente natural.»
«Sim?»
«Sim. Este estava na antiga Biblioteca, mesmo ao lado do salão principal.», com um leve movimento corporal, pelo canto do olho parecera-lhe um levantar do queixo, indicara-lhe o quadro que estava à frente deles. «É um quadro maravilhoso mas lá tinha um outro encanto. Vim confirmar isso hoje.», o suspiro que ouvira seria real ou imaginado?
«Também trazia um plano?», encarava-o pela primeira vez.
«Um plano?», a pergunta ou o seu olhar apanhara-o desprevenido, assim julgava ela, que via naquela hesitação dele um primeiro sinal de submissão. Tontaria dela.
«Eu elaborei um plano para esta visita. Passei primeiro por Winterthur, onde visitei a casa e o jardim. Falei com várias pessoas ligadas a Villa Flora e aos Hahnloser. Apropriei-me da história deles o mais que pude.», fazia pausas. «Queria aqui entrar com o espírito de lá. Até tomei um café revolucionário, eu que nem gosto especialmente de café!», sem querer, floresceu-lhe nos lábios um pequeno sorriso, enquanto lhe dizia aquilo tudo. Quem se submetia a quem?
«Compreendo. Eu também trazia um plano.», ele fitava, de novo austero, La Blanche et la Noire, de Félix Vallotton.
«Convido-a para jantar?», nem ela nem ele (pensara ela) ousaram, de imediato, perceber se a pergunta tinha sido mesmo formulada ou fora apenas um pensamento dele.

[The end]

[Sandra Costa]

Exercício 2.0 #6

O primeiro detalhe em que reparara ao entrar na sala Vallotton fora nos seus pés descalços, ligeiramente inchados, e numas sandálias pretas abandonadas por baixo do banco. Por momentos, parara junto da porta e olhara em redor à procura de alguém tão espantado quanto ele mas apenas encontrou o seu reflexo no silêncio.  Não havia mais ninguém na sala, apenas aquela personagem que se interpusera entre ele e o seu segundo objetivo da noite, porque entretanto anoitecera e o tempo começara a tornar-se numa substância que tudo extingue.
Entreteve-se com Des tas de sable blanc e Capucines, marguerites et églatines, tendo também espreitado o papel de parede da sala Villa Flora, reconhecendo os motivos desenhados por Hedy Hahnloser-Bühler, mas não se conseguia concentrar. O seu olhar desviava-se a cada instante para a figura sentada em frente a La Blanche et la Noire e os seus pés descalços que, apesar de inchados, não paravam quietos.
Não se recordava de ficar assim perturbado com tão pouco, há muito tempo. A realidade era uma sucessão de equilíbrios que ele estreitava contra o peito sem que a sua percepção dos dias e das noites fosse alterada, a respiração controlada perante a construção do mundo à sua volta, nenhum deus de permeio, para além da literatura, onde sempre tudo se desvanecia, até ele.
Quando já não podia mais fingir, mas deixando uma distância conveniente, sentou-se em frente a La Blanche et la Noire, de Félix Vallotton. Era inevitável que alguma coisa estava para acontecer.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #5

O plano terminaria ali, no primeiro andar, quando finalmente entrasse nas salas da Colecção Hahnloser e onde, supostamente, «Le désir fleurit toutes choses», a acreditar no guia da Exposição. Só mais tarde se aperceberia que aquelas palavras eram de Marcel Proust, que a frase estava incompleta e que todas as coisas, tanto as imaginadas como as concretizadas, contêm, em si, o seu reverso. «Le désir fleurit, la possession flétrit toutes choses».
Era a primeira vez que viajava assim. Sozinha, para um outro país, com um plano por si determinado. Previra todos os detalhes, munira-se de alternativas para enfrentar imprevistos, levara de sobra todos os objectos que seriam utilizados, tudo para minimizar os efeitos da ansiedade que aquela solidão perante o desconhecido lhe traria. Não lhe custava debater-se com o mundo, sozinha, em lugares que lhe eram familiares, onde conhecia todas as tocas e todas as armadilhas, onde as decisões estavam previamente tomadas e em caso de necessidade haveria, afinal, alguém que a pudesse resgatar e onde o silêncio seria sempre o seu silêncio. O problema estava em enfrentar o mundo longe de todas aquelas circunstâncias atenuantes, confrontando-se com a sua solidão e a incapacidade que sabia ter de se relacionar com os outros, quando estes lhe eram estranhos. O seu silêncio tornava-a, então, impenetrável e ela tendia a desaparecer.
Porém, estava tudo a correr conforme tinha delineado, pelo que se sentia confiante, ela mesma, uma pequena, e à sua maneira, bela criatura que alguém esquecera de amar, quando, após percorrer as três primeiras salas introdutórias da Exposição, se sentou em frente a La Blanche et la Noire, de Félix Vallotton.

[Sandra Costa]

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #4

Ferdinand Hodler (1835-1918), A Noite (1889-1890), Kunstmuseum de Berna

Desde que começara a visitar o museu, A Noite, de Ferdinand Hodler, sempre estivera lá. No entanto, apenas naquela terça-feira se iria demorar junto da tela e tentar verdadeiramente aproximar-se dos seus possíveis significados. Atravessou a galeria principal da exposição permanente sem olhar para qualquer dos quadros ou as poucas pessoas que ali se encontravam e entrou na sala dedicada ao pintor simbolista.
Sete, não, oito figuras deitadas, Hodler claramente em duas delas e Augustine e Bertha como figuras femininas em destaque, recordava-se de ter lido isso no catálogo que levava debaixo do braço. Todas as figuras nuas, ou assim lhe era dado imaginar, mas só Bertha completamente descoberta, de costas para quem observava, adormecida nos braços de um homem que não era Hodler. Sabia que o tema do quadro era a morte mas por um instante imaginou que fosse o amor, ou a paixão.
Conhecia bem a história de vida do pintor, como a morte lhe circunscrevera a infância, pelo que não se espantava que ele a percepcionasse como um elemento natural, ainda que coberto de panos negros, que a qualquer momento se apodera do nosso corpo, como qualquer princípio de ordem e repetição de que a natureza é feita. Entendia, por isso, a sua necessidade de colocar os corpos em camadas paralelas, de linhas e de cores. Menos perceptível, mas mais do seu agrado por todas as interpretações que lhe podia dar, era a posição da morte sobre o baixo ventre do único Hodler que não dormia naquele quadro.
Sempre que tinha um daqueles pensamentos que fugiam à moral e aos bons costumes, seja lá o que isso fosse, um sorriso tornava o seu rosto menos austero e todo o seu corpo ficava mais atento à realidade que o rodeava.

[Sandra Costa]

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #3

Depois de percorrer as salas do subsolo, o plano determinava que devia subir para o andar térreo e entrar na galeria principal da exposição permanente. Deu por si a sorrir. Dois bancos almofadados. Não cedeu de imediato à tentação e demorou-se num dos quadros que queria muito ver. Manhã na Baía de Langland, de Alfred Sisley. Lembrava-se que descreviam as suas paisagens como impressões de eternidade na expressão singular de um momento. Quanta inutilidade naquela definição. Como não reconhecer ali a mesma dissolução do mundo que a levava a escrever um poema? Fez uma pausa nos seus pensamentos. De onde lhe vinha aquela altivez?
Acabou por se sentar um pouco, primeiro no banco mais próximo, depois ao fundo da galeria, de modo a que os pés lhe proporcionassem algumas tréguas e lhe passassem aquelas vertigens. Urdir planos não lhe dava o direito de se mostrar a si mesma como uma pessoa diferente, mas era uma explicação possível.
Enquanto o tempo ia decorrendo sem que ela sentisse a sua respiração no seu pescoço, pôde observar com cuidado os restantes quadros. Estavam ali alguns dos nomes que ela mais apreciava e ficava sempre emocionada quando os reencontrava. Memorizava pormenores, enumerava cores como contas dentro de um bolso, reconstruía o que estava disperso e fazia daquilo, o que quer que fosse, começos.
A verdadeira solidão é permanecer alheia ao que se aproxima.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #2

Tinha por hábito, sempre que outras realidades não se impusessem, visitar o museu à terça-feira depois de sair do trabalho. Comprava algo para comer na estação de comboios, percorria as duas ou três ruas que o separavam do edifício neoclássico que tão bem conhecia e sentava-se no pequeno muro que ladeava o museu a saborear mais o movimento crepuscular do fim de tarde sobre o pavimento da calçada, e a expressão sombria de uma nova linguagem que logo ali desaparecia, do que o recheio escolhido para alimentar o corpo.
Terminado aquele ritual, atirando para o caixote do lixo o que restava do mundo cá fora, entrava no museu. Era um velho conhecido pelo que não precisava de mostrar o cartão que lhe permitia aquelas visitas regulares. Cumprimentava os funcionários pelo nome sem, contudo, lhes sorrir. A um, esquecia-se sempre a qual, entregava a mala com os livros e os cadernos para que a guardasse até ao fim da jornada, conservando consigo apenas o seu catálogo das obras-primas do museu, ao qual juntou, quase de forma displicente, o guia da nova exposição.
Nem sempre levava um objetivo previamente definido. Naquele dia sim.

[Sandra Costa]


Exercício 2.0 #1

Apreciava museus que proporcionavam aos seus visitantes um banco em cada sala de exposições para que estes se pudessem recompor da inquietude, do mundo lá fora e da arte ali dentro. O Kunstmuseum de Berna parecia não ter e ela, cansada da viagem, com os pés sempre cúmplices da dor, não conseguia demorar mais do que breves instantes junto de cada quadro e isso estava a inundá-la de tristeza. A imagem era banal mas o mais verdadeira possível.
Decidira visitar o Museu naquele dia, ao fim da tarde, aproveitando o fecho semanal mais tardio e uma certa frescura que imaginara poder vir do rio, ali tão perto. Agosto não era o seu mês mas era o possível e concretizar planos como aquele exigia que se mantivesse a vida, ou pelo menos as suas margens, à distância.
Tudo fora meticulosamente pensado pelo que lhe era insuportável que pudessem ser os seus pés a traí-la.

[Sandra Costa]


segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Hopper #2

Edward Hopper, Excursão pela Filosofia, 1959


Excursão pela Filosofia (1959)

De mãos descaídas entre os joelhos, sentado na beira da cama, um homem medita, aparentemente sobre um rectângulo de luz, definido no chão de um quarto imaculado, quase asséptico, e onde só o seu pé esquerdo toca. O seu olhar, no entanto, está ausente e ele não se apercebe que a janela aberta nos revela o sol pela tonalidade do azul com que o céu circunscreve a colina. Tudo nele é inacção. Desabotoado tem apenas o primeiro botão da camisa branca e Jo, ou Edward, as fontes são inexactas, refere-se pela primeira vez a este quadro como a “Excursão pela Realidade”.

De costas voltadas para o homem, uma mulher, “not a nice girl”, está deitada, seminua, quase em posição fetal. Os cabelos espalhados na almofada e a forma como a combinação de um tom rosado destapa o que não era suposto destapar, permitem-nos concluir, talvez erradamente, que dorme. Os pés estão ligeiramente sujos, seja lá o que isso significa, embora haja uma referência em conversa a umas sandálias, como se as mesmas pudessem qualificar esta história.

O livro, abandonado sobre a cama, é Platão, relido demasiado tarde, disseram eles – e todo um manancial de interpretações sobre dois mundos, o dos sentidos e o das ideias, o das sombras e o da luz, se concretiza no nosso olhar, cavando ali uma nova sensibilidade que nem sempre coincide com a essência do que é real. Pobre filosofia que nada sabe do amor e do que se perde quando este se corporiza, que nada sabe de um homem e de uma mulher, como um livro, abandonados sobre a cama.

Nenhuma menção foi feita ao quadro pendurado na parede. O que é irrelevante não merece confidências. Ou o que é evidente eleva-se para além do olhar, concretizando-se, uma vez mais, em distância.

[Sandra Costa]

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Hopper #1


Edward Hopper, Quarto de Hotel, 1931

Quarto de Hotel (1931)


Uma mulher está sentada na beira da cama num pequeno quarto de hotel. É noite e ela está cansada. Tira o chapéu, os sapatos e o vestido. Não importa onde ficam depositados. Na cómoda, no chão, no sofá verde. A ordem não é aleatória, mas os lugares são negligentes.

Não desfaz as malas e concentra-se na leitura da tabela de horários dos comboios para o dia seguinte. Sabemos isto pelas anotações de Jo. Um papel amarelado transforma-se num objeto de precisão sem que, no entanto, se reconheça o que comunica. Os seus dedos parecem hesitar nas últimas linhas da tabela enquanto ela decide quanto tempo terá para dormir ou para permanecer acordada até serem horas de ir para a estação. O reconhecimento da hesitação tinge o seu rosto de uma imperturbável mas obscura lucidez.

Em contraste com a escuridão que a janela aberta deixa antever, o quarto está artificialmente iluminado e a luz desenha uma diagonal cuja sombra pousa nos seus pés que não cabem na tela. É evidente que algo deve sobressair deste confronto mas nenhum conteúdo ficcional se atreve a desfazer o entorpecimento que objetivamente percorre o corpo daquela mulher sentada na beira cama num pequeno quarto de hotel.

É Jo quem posa para Edward no estúdio de Washington Square. Na realidade, é uma mulher em viagem que nada nos revela para além da sua solidão.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Exercício #9

Despedira-se com um beijo.
Tanto tempo depois e ela continuava sem conseguir explicar o que acontecera. Deram a conversa por terminada, fizeram contas com a realidade, um acompanhou o outro até ao carro, aperceberam-se que a cor do mundo mudara. O determinismo de uma cadeia de acontecimentos previsíveis como a única matéria sensível e eis que os lábios dela tocaram a boca dele de forma tão breve, e assim intensa, quanto uma possibilidade.
Ainda que em si pulsasse o sulco do filtro labial dele, uma suave depressão como topografia, jamais acreditaria que o amor fosse tão só a arte do possível. Preferia dizer-lhe que é uma imagem que já se desfaz. Um tempo que é sempre a primeira vez. Ou que todas as histórias têm um fim.

[Sandra Costa]


sábado, 5 de agosto de 2017

Exercício #8

Quisera dizer-lhe tudo, mesmo não sabendo o que tudo significava: que hesitava nos olhos dela; que fazia das palavras pronunciadas barricadas para que nenhuma fibra muscular do seu corpo se contraísse involuntariamente; que entre eles não desejava segredos mas que pressentia dentro de si o tal pequeno deus a intensificar o ofício das silhuetas; que nada era o que parecia ser e, perante a consistência do mundo, ele era apenas mais uma personagem naquela mesa do café.
Quisera dizer-lhe tudo isto mas falou apenas do último livro que leu ou da última viagem que fez, já não se lembrava. Recordava sim as palavras de Pavese: "A ofensa mais atroz que se pode fazer a um homem é negar-lhe que sofra"[1].

[Sandra Costa]


[1] PAVESE, Cesare – O Ofício de Viver. Lisboa: Relógio d’Água, 2004, p. 123.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Exercício #7

Quebrara-se o silêncio. Não memorizara sobre que falaram mais nem quem reatou a conversa. Dentro dela tudo era confronto e de uma das gavetas de Freud, atrever-se-á um dia a verbalizar?, vislumbrou Florence a deambular de olhar perdido pela noite de Paris pronunciando docemente o nome de Julien, numa dança com o trompete de Miles. «Tu sais que je serais là».
Improvisava. Para que nenhum efeito fisiológico emergisse sob as pálpebras, imperdoável fragilidade, encostou-se a uma das extremidades de si mesma e deixou-se apagar pela solidão.

[Sandra Costa]



Exercício #6

De repente, entre eles, acentuara-se uma penumbra, um exercício de natureza táctil rente à escuridão, a inevitabilidade de subsistirem no interior de um labirinto, sem o novelo de Ariadne. De onde vinha a imprecisão daquele olhar? Que medos, agora, passariam a atordoar as madrugadas? 
Ele inquietava-se. Continuava a não acreditar em simbioses. Havia demasiadas flores murchas em solos sagrados.

[Sandra Costa]

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Exercício #5

Sobre a mesa do café, entre os dois, vinda do nada, isto é, de uma outra geografia que nos habita e que não se deixa interpretar por signos mais ou menos conhecidos, abatera-se uma primordial imobilidade. Desarmadas as palavras todas as imagens eram supérfluas.
As leis da física explicariam a ressonância, ou a sua ausência se alguém partisse à procura da origem daquela anomalia num critério biológico, mas um relato do que se passava ficaria sempre aquém das evidências.
Determinada a acabar com aquilo, demasiada fraga para um coração interrompido, ela ergueu o olhar para o encarar, como se o estivesse a ver pela primeira vez.

[Sandra Costa]

Exercício #4

Como era hábito entre eles, pelo menos essa era a convicção dele, não havia silêncios como um último recurso; o fio da conversa conservava uma tensão que lhe parecia quase imaginária, semelhante à força de um pequeno deus em dia de criação, e os assuntos mais dispersos enovelavam-se sempre como se fossem uma misteriosa partitura.
Estranhou por isso que, algum tempo depois de nada ter acontecido pese embora uma desordem momentânea, começasse a sentir nos diversos músculos que controlam a respiração, com especial incidência para o diafragma, a perturbação que o silêncio dela, ali àquela hora tardia, criava na sua solidão.
Se escrevesse, ele teria confidenciado para si mesmo que, depois de dois sinais na mesma direção, alguém julgara criar um hiato na melancolia.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Exercício #3

Nada se alterara na ordem natural das coisas. Se desviasse o olhar, continuaria a medir o Verão pela altura do milho; no fundo de um dos seus bolsos encontraria, com toda a certeza, o peso de uma âncora no contorno das chaves de casa e fosse qual fosse o lugar em que voltasse a pousar o olhar, ainda que fosse no rumor que imaginara na mão dele, as articulações dos seus dedos já se teriam esquecido de como se sustém a respiração.

Alguém descreveria o processo como uma ilusão de óptica. Ela escreveria mais tarde que julgara criar um hiato na melancolia.

[Sandra Costa]

sábado, 29 de julho de 2017

Exercício #2

Ele sentira-o como se não tivesse acontecido, como mais um pormenor de ausência a acrescentar àquela sucessão de reflexos e palavras que lhe marejavam os olhos e a boca de forma quase mecânica e que faziam daquela tarde de Verão uma inevitável demonstração da sua capacidade de viver como um animal em extinção.
Porém, como um sinal, a sua mão pendia agora sobre a mesa do café e na base do pulso, na artéria radial, sentia que algo em si, para além do sangue, pulsava em desordem.

[Sandra Costa]

Exercício #1

O toque dos dedos dela na mão dele fora tão breve, e assim intenso, quanto uma possibilidade.
O mundo continuara, a conversa prosseguira sobre a dimensão filosófica do amor (as geografias e os medos de quem escreve para uma imagem que já se desfaz) e tudo à volta permanecera intacto na sua existência.
Mas na epiderme, nesse filtro, limite, que nos separa do outro ao mesmo tempo que nos faz resvalar de um corpo até outro corpo, os dedos dela continuavam a tocar a mão dele, ardentes, assim intensos, como uma possibilidade.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Epigrafia #2

     Fotografia de Ekaterina Belitskaya

«explica-me este verso
pedias
como se a luz
pudesse
permanecer intacta
sobre a tua mão.»

Ana Paula Inácio, Anónimos do séc. XXI, Averno, 2016, p. 45.


Não expliques nenhum verso.
Peço-te.

Deixa que a luz tombe
sobre as janelas quase abandonadas
da varanda

e que as sombras de ferro forjado
que perduram nas cortinas
mesmo anoitecendo

sejam a única coisa intacta
no interior do poema.

[Sandra Costa]

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Nada se sabe das profundezas


NADA SE SABE DAS PROFUNDEZAS
(primeiro estudo para uma duplicidade)



#1

À superfície do mundo
a ondulação do desejo:

uma pedra - o amor - submersa.

#2
pode o poema permanecer
em círculo      água em movimento
e sempre insuficientes as pálpebras
susterem o silêncio?

#3
talvez esta seja a textura dos dias
que se aproximam das profundezas:
a agitação sob a luz nada revela
e criam-se estratificações nebulosas
junto ao olhar como se a inquietude
- a água - fosse o único ritual
capaz de criar o mundo.

#4
[quero] toda a poesia é assim:
um lugar onde a superfície
esconde mais do que revela
e a morte é a pedra possível dentro da água
ao alcance do braço se nada se sabe das profundezas


[Sandra Costa]

(texto integral de um livrinho de 8x5,5 cm, com projecto gráfico e fotografias de Paulo Gaspar Ferreira e editado pela in-libris, em 2003)


quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Traições VII

COLD IN HAND BLUES

y qué es lo que vas a decir
voy a decir solamente algo
y qué es lo que vas a hacer
voy a ocultarme en el lenguaje
y porqué
tengo miedo

PIZARNIK, Alejandra – El Infierno Musical. 1971.


COLD IN HAND BLUES

e o que vais dizer
vou dizer somente algo
e o que vais fazer
vou ocultar-me na linguagem
e porquê
tenho medo


PIZARNIK, Alejandra – El Infierno Musical. 1971.


[Tradução de Sandra Costa]