segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Epigrafia #12

«Eu cantei este amor sem que soubesses
[…]
Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.»

Fernando Assis Pacheco, 'Cuidar dos Vivos', Coimbra,
Cancioneiro Vértice, 1963.

Num lugar que não existe,
tão próximo do mar quanto possível,
escrevo o último poema do ano
sem que saibas que o estou a escrever.

Sento-me rente ao derradeiro precipício
da tarde como se não tivesse vertigens.

Aliso a saia que não uso há mais de vinte
anos para que nenhum vinco gesto alusão
fique por compor.

E deixo que o vento revolva tudo o mais que
em mim existe: uma flor súbita nos cabelos,
o mais frágil e hesitante botão da blusa,
a forma como os meus dedos pronunciam
em surdina a solidão e, por fim, o que resta
de um sorriso, o que fica de sagrado do amor,
num rosto inesquecível que não é o meu.

Neste lugar que não existe,
escrevo-te o último poema do ano
e não saberás nunca que to estou a escrever.

[Sandra Costa]

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Calendário do Advento 2018


Daniel Ablitt,
Acendendo as lanternas

Poema de Natal

«Aquele que inventa, ao contrário daquele que descobre, não acrescenta nada às coisas, traz aos outros seres apenas máscaras, intermediários, um caldo de ferro.»

René Char, Les Matinaux, suivi de La Parole En Archipel,
tradução de Inês Dias.

Aquele que atravessa a escuridão
revelando o rumor das sombras como
se estas fossem manhãs

Aquele que denuncia a fonte que secou
o equilíbrio rarefeito o caminho já trilhado
anunciando as arestas da sede

Aquele que cartografa os fragmentos
da queda dos corpos as insónias endurecidas
desidratadas de oxitocina compondo uma
paisagem límbica onde o fogo volta
a ser substância

Aquele que vislumbra o que há de putrefacção
no remorso de raiz no erro o que há de orografia
nas sílabas rasas do medo devolvendo
aos olhos o rumor da terra

Acrescenta, aos quatro elementos que nos
inquietam, o amor, essa matéria orgânica,
visceral, para a qual fomos feitos.
Aquele. Eu. Tu. Nós. Vós. Eles.

Dezembro de 2018 |Sandra Costa

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Epigrafia #11

«Diremos apenas até amanhã,
como se o amanhã existisse no mesmo lugar, […]»

Jorge Pinho, 2015.

Há sempre um equívoco em cada despedida.

A antecipação da onda que reveste
a imobilidade dos lugares, dissipada esta bruma
melancólica que em mim apaga as tuas feições.

Uma estação em estado de esteio ou de janela.

O desprendimento da última folha da magnólia
sem a exaltação da espera, esse percurso
que foi a tua mão na minha.

Uma planície onde se precipitam os mortos.

A conjugação da luz num coração futuro,
pedaço de metal onde escondo o ofício
de ser teu.

Há sempre um começo antigo em cada despedida.

[Sandra Costa]

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Epigrafia #10


«O teu rosto torna as coisas simples, […]»

Egito Gonçalves, de "O Pêndulo Afectivo”
in Apeadeiro 1, 2001.

O rosto que sou quando termino
de percorrer o efeito de espelho
nas tuas mãos.

As fissuras que devolvo pela manhã
aos lugares intactos da tua ausência.

A respiração que me permito
na espessura vagarosa do primeiro
poema que um dia se cobrirá
com a tua voz.

Em vez do meu rosto, 
esse rosto que sou.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Epigrafia #9 (Versão 2)


«[U]m raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho (...) o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?»
Herberto Hélder, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim.



As janelas da casa corrompem o silêncio
sob o qual todas as memórias oscilam
entre a incerteza de alguma vez terem existido
e a incredulidade quanto à fórmula como
subsistem na inclinação do sol sobre o horizonte,
esse erro que os dias incessantemente procuram
repetir. No lugar da penumbra, velhos papéis,
folhas soltas, sustêm a caligrafia da morte
e nenhum golpe de vento, maresia, raio oblíquo
penetrará nesta paisagem onde tudo é precipício.
Reatas o que se perdeu no fulgor que subsiste
em cada sombra ainda que só a imitação de um
espelho pela casa evite que o teu rosto desapareça. 

[Sandra Costa]

domingo, 25 de novembro de 2018

Epigrafia #9


«[U]m raio fuzilou junto às janelas e vi no espelho (...) o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem era?»
Herberto Hélder, Servidões, Lisboa, Assírio & Alvim.



A janela da casa é toda uma composição
de espera. O travo da melancolia em cada
poro estalado da madeira. A entoação
das insónias na sujidade dos vidros. Sombras,
vigílias, noites que se extinguem, estendendo-se
sem sobressaltos, em cada grão de poeira
que se acumula entre os dedos,
em cada pressentimento que não surge.
Não existem espelhos, só paisagens.
Não é só o teu rosto que não reconheces.
Que vulto é aquele que se aproxima do precipício
que é cada palavra que arrefece nas tuas mãos?

[Sandra Costa]


Fotografia de JOSEPH CHARROY.

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Epigrafia #8


«Numa entrevista antiga, a cantora Joanna Newsom conta que, durante a adolescência, costumava enfiar pedras nos bolsos para poder caminhar no fundo do rio. Em certas pessoas, no entanto, o peso do silêncio é tão grande, que, se mergulhassem nas águas, facilmente iriam ao fundo sem precisarem de pôr pedras na roupa ou de as coser nos bolsos, como teria feito Virginia Woolf.»
Alda Rodrigues, Notas do fundo do rio, in https://formadevida.org/, 2018.



Não me demoro nos dias
Assim principia o poema que não cheguei
a escrever. É outra forma de caminhar
no fundo do rio. De esquecer que não há esteios
que aguentem tanta falta de coincidência
entre as instruções que recebemos para
atravessar a rua e as ruínas que encontramos
em cada semáforo que não se acende. De extinguir
o que nunca existiu, ainda que pudesse acreditar,
em cima de um daqueles pequenos bancos da infância,
que a penumbra é uma haste sem madrugada.
De ignorar com o corpo a magnitude dos lugares
imperfeitos.

Não te demores nos dias. Contemplemos todos,
os poetas que salvaram o mundo
com menos um poema.

[Sandra Costa]

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Desenho e Colagem

Joan Miró, Sem título (Desenho e colagem), Setembro de 1933.

Para a Ana Maria Guardado Dias.

O poema como desenho e colagem.
Os contornos do pintor que se pinta
a si próprio, a traço negro em fundo
escurecido e desbotado, com um braço
estendido perante a tela. Ou um falo
que se ergue perante uma escolha e
que em conversa entre iguais resulta
num caralho que pinta e pensa.

Dois recortes de postais de mulheres
colados sem displicência: uma a cores,
musa de oitocentos, na cabeça do artista;
outra a preto e branco, mulher moderna,
na ponta desse seu braço que assim
se retrata.

Por fim, a imperfeição do círculo
vermelho sobre o recorte rectangular
e rasgado da lixa. Estudiosos viram nisto
“a interpretação de Miró sobre a violenta
confrontação entre vários sistemas
de representação”, um alvo áspero
que nos prende a atenção, a pupila
do olho que se abre à percepção.
Outros, pela sua posição junto
ao pénis que se afigura, sugerem uma
vagina abstracta ou, diria eu,
como Eros pode ser dúbio,
sem títulos e sem fragmentações.

[Sandra Costa]

sábado, 25 de agosto de 2018

Epigrafia #7

Finisterra, Agosto de 2018.

«You should go
from place to place
recovering the poems
that have been written for you
to which you can affix your signature.»

Leonard Cohen, Book of longing,
Penguin, 2007.





Não imagino melhor intenção
para me precaver do inferno,
se me dedicasse a esses enleios,
do que ir de lugar em lugar
à procura dos poemas que não escrevi.

Os poemas da espera, nem um iniciado,
junto aos quadros de Holsøe, onde cada
uma daquelas mulheres aguarda o amor
ou a morte, como se ambas as estâncias
fossem o caule da mesma flor.

O poema para o último encontro
de Hellelil e Hildebrand nas escadas
da torre, momentos antes de todas
as histórias de cavaleiros e princesas
se desvanecerem em névoas e baladas.

Os poemas sobre os joelhos que não
esfolei na infância, uma vida inteira
a tentar evitar os segredos que se
adivinham na felicidade ou o medo
da catástrofe que sempre se lhe segue.

O poema sobre aquelas flores selvagens
e amarelas que crescem na berma da estrada,
também lá estavam em Finisterra pelo que
pergunto se será erva doce, e que aparecem
em tantas imagens que faço, fotográficas
e poéticas, mesmo sem as contemplar.

Não imagino melhor intenção
para me proteger da lonjura e do silêncio,
sei que um dia farei essa inevitável viagem,
do que ir de lugar em lugar
à procura dos poemas que não escrevi.

[Sandra Costa]

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Epigrafia #6



«estou sozinha respirando sozinha
e sinto Verão nesta solidão,
(quem disse que a solidão é um ser de Inverno?)»

Inês Lourenço, Um quarto com Cidades ao Fundo,
Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2000




A premissa estava errada.
A solidão não é.
Nem Verão nem Inverno.
Nem os teus pés descalços, escondidos
na água, entre as rochas de uma praia obscura.
Nem o movimento da tua mão
no vidro da janela para que a condensação
provocada pela chuva se apodere de ti.
Nem a forma como te encolhes
perante as pétalas secas da buganvília.
Nem o teu rasto no que desaparece
no perfume quase inerte das magnólias.

Tudo isto são inícios. Primícias.
A solidão não é.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Epigrafia #5

Finisterra, 9 de agosto de 2018

«o litoral instável sob os nossos pés; as dunas prontas a mover-se;
basta um golpe de vento.»

Finisterra, Carlos de Oliveira


Observas o homem sentado na pedra,
próximo desse último contorno
onde o fim começa, longe dos gestos
que hoje nos arruínam. Se olhas dali
para aquele mar que te torna vulnerável,
o homem está do lado esquerdo
do promontório, como se isso tivesse
algum significado, e inclina-se, ao de leve,
sobre a página de um diário, o silêncio
de um postal que não chegará a escrever,
o pó acumulado da peregrinação.

No fotograma que capturaste,
o homem é um ângulo inesperado,
um passo em falso e o sulco do poema,
essa luz turva quase paisagem,
deixará de existir.

[Sandra Costa]