segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Manual da Vida Breve - XVII

Jib Peter


















19.

As folhas acumulam-se sobre o capot do carro


cobrindo tudo o que ali existe de referências,
de símbolos tangíveis, de factos mais ou menos
espessos que traçam os lugares da identidade

formando inúmeras camadas de matéria vegetal
que simplificando se decompõem em dimensão
ainda mensurável

e desta dissonância da chuva ergue-se
um limite mecânico à desolação do mundo                        
que ainda treme

[Sandra Costa]

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Poema de Natal | Dezembro de 2013

Jan Bulhak, Evening Prayer, c. 1900

Poema de Natal

Na fotografia a preto e branco
de início do outro século, um homem
cumpre a solidão como um ritual, pronuncia
o silêncio deixando-se tocar pela luz
do fim de tarde e tudo o que é penumbra
revela-se promessa.

Nesse instante, compreendes: o único caminho
possível até à madrugada insubmissa
também se faz de esperas,

ou de um detalhe que nos salva.

[Sandra Costa]

sábado, 9 de novembro de 2013

Manual da Vida Breve - XVI

18.


É Novembro. Enquanto alguns pássaros
pousam sobre os fios que pautam o silêncio,
inclinando um pouco mais a tarde, outros
partem e passam em formação sobre
os prédios da cidade, tão distantes

quanto evidentes, e uma parte de mim
reconhece ali um vazio,

um lugar onde suster o coração.

[Sandra Costa]

sábado, 2 de novembro de 2013

Manual da Vida Breve - XV

10.

A forma como se começa.
                   
A luz na distância como se a espera
fosse uma sombra que não pousa.

O que envolve a casa são as imagens
que desaparecem como vazios ficam
os nomes. Porque o que ainda se desenrola
é o reconhecimento de que nada mais há
a enumerar. Fechas as janelas. As noites
descem devagar, tão devagar que desconheces
o medo que fulmina. Desfazes-te dos mantos
e das palavras. Cumpre-se a morte. Tudo
permanece igual à forma como se começa.

[Sandra Costa]

domingo, 22 de setembro de 2013

Manual da Vida Breve - XIV

David H. Gibson, Churchyard Grapes, Betlan, Spain | 1998

17.



Não te espantas com as uvas ainda 
por colher sobre o velho portão da casa.

É Outono e há um cheiro doce que se 
sobrepõe ao pó acumulado entre as pedras
do muro – em redor, os campos de milho 
já foram devastados pelas máquinas e da
terra e do que resta dos caules vem um 
outro cheiro que te recorda a infância – 

Junto ao velho portão da casa hesitas
entre tocares as sombras ou a ferrugem

– o medo é a tua mão sobre as coisas
ou o tempo que tomba com as colheitas –


[Sandra Costa]

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Manual da Vida Breve - XIII

16.


Ontem, por entre o ofício da solidão
dos campos de milho, a luz mudou
e começou Setembro [1].

Talvez agora cesse a espessura
de mistério que rodeia a penúltima
casa da aldeia e sobre aquelas ruínas
que servem de abrigo a umas quantas
árvores um pássaro levante voo
para que no último verso se revele que

a ausência não é mais do que uma vigília.

[Sandra Costa]



[1] «Mudou a luz: isto é Setembro» (Carlos Marzal).



sábado, 7 de setembro de 2013

Nenhuma Flor - I


Repercutem os nomes abatidos
a luz atravessada do avesso
as películas que ficam do absoluto dos poemas
o ofício da vigília dentro do sono mais profundo

- designações trémulas do sagrado
ou um par de asas a corromper o silêncio –

Sandra Costa (poemas), Paulo Gaspar Ferreira (fotografias). Nenhuma flor. Oito imagens e o dizer dos lábios. In-libris, 2004.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Manual da vida breve XII

15.


Sobre a ponta do cavaleiro, ergue-se o farol
cuja torre se encontra do lado de terra
e a entrada está virada para o mar, como se
adivinhasse o construtor a vertigem que se
acende e se apaga naquele ofício onde quase
tudo se assemelha à solidão e que a cada três
sinais de luz branca de novo a morte se afasta
mas regressa como as constelações quando
o céu se dissipa de sombras.

[Sandra Costa]


sábado, 17 de agosto de 2013

Manual da Vida Breve - XI



14.


Para o Vítor.

Na alameda dos plátanos, em 1925 descrita
como a avenida directa ao mar, ergue-se a Vila Gladys
com o seu tom rosa embaçado, os muros bordejados
a branco e da mesma cor todos os lugares que
ali servem de cadência e de passagem: o portão tripartido,
os frisos neoclássicos das varandas e as portadas de
madeira das janelas.

Quem por ali passa nada sabe da história daquela
casa – se o salão de bilhar no rés-do-chão ainda existe,
quantas vezes Gladys se terá recordado do som do
seu violino sob a luz dedilhada da araucária, porque
terão sido cortadas as antigas palmeiras do jardim
da entrada e que (des)amores ainda poderão ser
colhidos na luz nocturna do lago.

Por último, muitos anos depois deste poema, restará
apenas o que ficou inscrito no tronco dos plátanos
como uma memória de infância: um vislumbre
da Riviera na penumbra da luz de Verão de Francelos
e que em Setembro, antecipando regressos, enrolavas
uma vez mais como se tudo aquilo fosse somente
uma planta de arquitectura.

[Sandra Costa]


terça-feira, 26 de março de 2013

Still Life #4













René Groebli, da série «The Eye of Love», 1953


Still Life #4


Num hotel barato de Paris, o que resta
do amor é uma composição imóvel
onde cada elemento deixado ao abandono
- o último eflúvio da rosa, o rumor rubro
do vinho, a sombra táctil do cigarro -
explica como o tempo, quando perto
do coração, se materializa numa oração
desprovida de significados mas onde cabe
a luz suficiente dos objectos mais quotidianos.

[Sandra Costa]

Still Life #3

















Kristoffer Albrecht, 1986



Still Life #3

A maçã no parapeito da janela, com as folhas
que ainda há pouco morriam na árvore dobradas
sobre o silêncio perplexo da espera, é a demonstração
de que o rigor do Inverno nem sempre encontra
a casa como se esta fosse uma ilha. Por vezes,
a respiração das sombras, no percurso entre
dois sintomas da fragilidade do mundo, deixa
que nas vidraças se forme uma clareira e por ali
se pressintam outros medos outras pausas
para além da constelação de gelo que tudo 
cobre, impotente como um pálio.

[Sandra Costa]

sábado, 23 de março de 2013

Still Life #2


















Kristoffer Albrecht, 2009



Still Life #2

Enquanto durar o poema, no gargalo
da garrafa a Primavera permanece intacta.
O ramo da cerejeira suspenso num
desfiladeiro de vidro cria duas margens
de água mas ali não há milagres e a
transparência que resiste dobrar-se-á
em breve num lugar estagnado,
talvez sagrado, onde a natureza morre
e um poema acaba.

[Sandra Costa]

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Still Life #1

Misha Burlatsky, Balance

Still Life #1

O elemento que sobressai é o equilíbrio.
E no entanto, as sombras estão dispostas
como se não fossem sombras mas apenas
o tempo que resta quando entre a palavra
e o esquecimento se instala a penumbra
ou a solidão. Quanto à mesa de madeira,
quase perfeita, é um lugar ligeiramente
à esquerda para que da inclinação da flor
sobrasse uma margem de inquietude sobre
essa vida que não existe.

[Sandra Costa]