segunda-feira, 27 de julho de 2020

Sobre «Boletim Meteorológico» II


COSTA (SANDRA).— Boletim Meteorológico. 1.ª edição. volta d'mar. [Nazaré]. Março 2020. Pedidos para voltadmar@gmail.com

«Lembro-me de, já na adolescência, um médico me ter pedido que lhe descrevesse certa dor que me fazia sofrer. Como se descreve uma dor? Ainda hoje não consigo. Vasculho palavras comuns, aplicadas habitualmente ao sofrimento físico, como se respondesse a perguntas, "é  aguda?", "é intermitente?", "é contínua?", mas regressa-me sempre a sensação de ficar aquém, de poder até morrer por não ter sido capaz de fornecer ao médico a informação adequada.

Compreensivelmente, é essa mesma sensação de impotência que me assalta quando procuro dispor de palavras para falar da poesia. Como se pertencessem a diferentes apartamentos do meu cérebro, a vizinhos que nem os bons-dias trocam, o "sentimento poético" e o "discurso analítico sobre" evitam-se mutuamente. A poesia é para ler (em voz alta, de preferência) e habitar afectivamente, enquanto a análise do poema me obriga a um distanciamento que contradiz a minha relação e o meu compromisso com o poema que me toca.

E no entanto, não posso deixar de me referir (e expor a análise possível) a Boletim Meteorológico, de Sandra Costa, cuja poesia não conhecia a não ser de alguns poemas colhidos, dispersamente, aqui ou ali.

Neste livro pouco extenso, de formato pequeno, agradável ao olhar e ao tacto, a "descoberta", irónica, mas não só, do léxico da meteorologia, como quadro metafórico privilegiado e critério consistente, permite uma leitura originalíssima e extremamente feliz dos sentimentos. O que faz ainda mais sentido, tratando-se de criar, poema a poema, uma temperatura da alma ("temperatura" porque se trata de um sentido específico, que não é, julgo, nem o olhar nem o ouvido. É outra coisa).

A consciência, a voz poética, evoca quase sempre, aqui, um sujeito frágil, desamparado, um junco em face das variações atmosféricas, que usa como uma espécie de luz, de medida e de linguagem para sondar a memória, os sentimentos, as perdas, que são, não apenas a memória, os sentimentos e as perdas pessoais, mas as da humanidade, em cuja História se reconhece e em que reencontra os seus próprios desejos e gestos:  "Assim, quando a noite começar Fevereiro,/ a norte do Cabo Raso, a ondulação poderá atingir/ os quinze metros, prevendo-se rajadas que talvez/ façam sucumbir o que de mais íntimo existe sob/ a penumbra de voz quando um homem e uma mulher/ sonham beijar-se pela primeira vez, ainda que milénios/ os afastem e aproximem de Troia."

A experiência do registo do tempo, ao longo do solstício, captando nesse registo sobretudo as mais subtis variações atmosféricas íntimas a um sujeito, na sua busca de comunicação, diferida, com um amado ausente, retomando todos os trilhos de poetas intemporais, faz de Boletim Meteorológico, na sua deliberada e encantadora contenção (eu diria: discrição) um livro a que se volta, a que tenho voltado.»

[José Pacheco, 8 de Julho de 2020, no blogue profissão: leitor]


Sobre «Boletim Meteorológico» I


COSTA (SANDRA).— Boletim Meteorológico. 1.ª edição. volta d'mar. [Nazaré]. Março 2020. Pedidos para voltadmar@gmail.com

«Com o país paralisado e a bandeira da cultura à meia-haste, ninguém leva a mal que as pequenas, micro e médias editoras de livros, mormente de poesia, roguem aos céus por milagres pelo menos tão promissores como foi o da ressurreição. Em nome do pai, que os leitores se multiplicassem; em nome do filho, que não fechassem portas as poucas livrarias onde é possível meter livros sem submetê-los à agiotagem de distribuidores gananciosos; em nome do espírito santo, que dos livros que fossem sendo vendidos se recebesse algum como garantia de que outros pudessem ser publicados. No paraíso cada pessoa poderia viver do seu trabalho sem ter de se submeter à servidão pragmática de extras. Longe de havermos lá chegado, e parecendo-nos cada vez mais distante por nas lamas do inferno continuarmos a patinar, ainda por cima rodeados de intervenientes que se divertem com a inumação, resta-nos purgar as mãos e garantir dois metros de distanciamento social na esperança de que em não podendo viver a respirar nos livremos de morrer com falta de ar. Por lavar as mãos entendamos, neste contexto algo parabólico, cumprir o nosso pequeno papel de leitores a quem os livros vão chegando por obra e graça do divino espírito santo.

Eis que nos chega o “Boletim Meteorológico” (volta d’mar, Março de 2020) de Sandra Costa, autora que “Sob a luz do mar” (Campo das Letras, 2002) descobrimos num tempo já distante e à qual regressámos, mais recentemente, por culpa de um “Untitled” (volta d’mar, Dezembro de 2017) de boa memória. Apoiando-se numa terminologia meteorológica, a autora adopta agora uma coloquialidade que não é das suas marcas mais reconhecíveis, mantendo-se fiel, no entanto, à tematização da lírica amorosa que já lhe conhecemos de outras paragens. Neste sentido, o último poema, intitulado “Amanhã é o primeiro dia de Inverno”, é talvez o mais revelador da comparência de um destinatário cuja ausência ou distância contribui para a conjugação da romantização do amor com a contemplação do mar. 

Desde a primeira hora marca fortíssima desta poesia, o mar — «elemento que é tão meu» (p. 15) — é o recurso paisagístico que atravessa quatro estações de poemas onde se mede a temperatura às emoções reflectindo estados de isolamento, distanciamento, ausência, solidão: «Em matéria de amor, / o que conta é o que consinto que permaneça / nos olhos, mesmo quando destruo todos / os versos que te escrevo» (p. 10). O objecto amoroso surge, desta forma, enquadrado num ambiente contemplativo onde sobressaem um corpo frio — «A previsão descritiva confirma que o frio / que sinto é real e não o resultado de qualquer / avaria técnica do meu corpo, tão desprovido / da seiva que só existe nos amores correspondidos» (p. 11) —, umas mãos geladas, apesar de ser Agosto, uma intimidade em dessintonia com a impetuosidade geralmente conferida à lírica amorosa: «Em desacerto com a chuva, que ora é íntima e / me desnuda ora é distância e me reveste de sede, / entregue ao frio que só o estado sólido da realidade / não poética consegue provocar, dilacerado por / relâmpagos que iluminam e apagam confidências / em milésimos de segundos como se essa fosse a / duração da eternidade, assim existe e se demora / em mim o único lugar possível onde ainda te / procuro, como um beijo» (p. 24).

“Boletim Meteorológico” é um pequeno conjunto de poemas de uma autora no domínio pleno da sua arte, consciente do tratamento a dar a temas que, sendo clássicos e lhe sendo caros, podem assumir novas configurações, conquanto quem os recupere saiba respeitá-los fazendo coincidir os mesmos com a cadência de uma respiração singular: «Céu geralmente nublado, com períodos / de chuva e, na costa ocidental, ondas de noroeste / com dois a três metros. A previsão do estado do / tempo a coincidir com o estado de tumulto, encolho / os ombros se lhe chamas delírio, em que se está a / transformar o ritmo destes versos, sempre / a coincidir com a cadência da minha respiração» (p. 15)»

[Henrique Manuel Bento Fialho, 9 de Abril de 2020, no blogue Antologia do Esquecimento]