sábado, 28 de dezembro de 2019

Epigrafia #16

                                               


«Em silêncio e devagar no escuro
Devo ser a véspera.»

Daniel Faria, Dos Líquidos.
Uma flor para todas as estações

À altura do quarto onde escreves,
floresce a magnólia branca no silêncio
do claustro onde a pedra é a tempestade
invisível do que fica por dizer. Nos vidros
enclausurados do Inverno, nos estilhaços
polinizados da Primavera onde pressentes
a pulsação das aves, em cada verso, em todos
esses lugares onde és musgo nos muros de
um caminho, a morte é a sombra que te
persegue atraindo fadiga ou lucidez,
como um ofício para começar o Verão,
um nome com os contornos da espera.

À altura do quarto onde ainda escreves,
há um verso teu que podia ser a véspera
de todos os meus poemas – «se fosses flor
através das estações» – desviando a morte
para um pouco mais longe. No espaço côncavo
entre estas duas realidades que não existem
estão todas as nuvens que trespassam a solidão
e repito aquilo que sempre soubeste: o amor
é uma candeia que se deixa dobrar pela luz e
que só para alguns ilumina os joelhos, esse
mar alto onde os barcos param a dedilhar a
ternura e a alucinação do desejo.

À altura do quarto onde sempre estarás
a escrever, o amor é este poema que te
escrevo, e lhe escrevo, permitindo que
entre na paisagem do silêncio a água turva,
por não ser corrente, onde outro homem
se inclina para lavar o rosto. Um poema
em redor de uma porta fechada por onde
trepam, selvagens, as flores que atravessam
as estações.

Sandra Costa, 28 de Julho de 2019 [Poema publicado no n.º 5 da «Gazeta Literária» da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto dedicada a Daniel Faria].

Epigrafia #15

                                               
Fotografia de Adelaide Sá.

«E entro sozinha no barco de mim.»

Maria Ondina Braga, «A Filha do Juramento», Edições Autores de Braga, 1995

Tudo na imagem é movimento. A incrédula
ondulação do rio antes de se entregar, tréguas
consumadas entre margens, amante que claudica,
à maresia. O reflexo imperfeito, desamparado,
quase desfeito dos barcos ancorados à superfície
de um espelho que é, afinal, só água, só o amor,
essa substância ainda mais inacabada, mas que
cintila como todos os beijos ou todas as palavras
ou todos os silêncios que terei de encobrir. A luz
tardia, a inclinar o poema para além da cidade,
torna tudo impreciso, um improviso, obscuro
o que apenas subsiste, mas comove-se com
a improvável revelação do teu riso quando
te apercebes que os barcos não têm nomes,
só números, e assim não os podes evocar.
Tudo na imagem é um instante. O que oscila,
afinal, é o tempo, esse pranto que se acende
ou se apaga, no lado de dentro do meu coração.

[Sandra Costa]

Calendário do Advento 2019 2.0

«Nunca soube escrever poemas de Natal. Se alguma vez cogitei escrever um, cedo pressenti que respiraria sempre o medo de cercar esse tempo de uma imaterialidade que acabaria fatalmente por o destruir.»

Jorge Pinho, Dezembro de 2019.
Poema de Natal 2.0

Eu também nunca soube escrever poemas de Natal.
Convoco vocábulos e imagens como se fossem
antigas, alguém escreveu há dias «minúsculas», histórias
de amor, mas quase sempre há nessas composições
mais silêncio que alegria, mais penumbra que luz,
mais inquietude ou solidão que o ritmo do mundo
a movimentar girândolas de vida.

Abeiro-me dos telhados inclinados das vigílias,
dos musgos dos muros da infância que cobriam
as nossas mãos de firmamento, dos descampados
onde florescem os bardos que vacilam com o vento,
mas sobre os meus cabelos as guirlandas são
de errância e já não deixo os pés descalços junto
da lareira à espera de milagres.

Eu também não sei escrever poemas de Natal
e é por isso que reconheço que tudo o que é matéria
do sensível pode cobrir este tempo de raízes,
trazendo-nos esse lugar que há em todos nós
onde ainda o amor, e já não o medo, é possível.

Dezembro de 2019 | Sandra Costa

Calendário do Advento 2019

Carla Gonçalves, Winter landscape

POEMA DE NATAL

Querias um poema à prova de bala
À prova d´água
Pequeno e maneiro
Transportável como bagagem de mão
Pudesse até à cabine acompanhar-te 
No levantar voo
Temperaturas altas suportasse
Como estrela
Na tua árvore observasse 
O teu acordar
Fosse ao micro ondas
Ao levantar te alimentasse
Anti nódoas, hipoalérgico, biológico e reciclável
Acolhesse todas as migalhas
Não encolhesse ou alargasse
Fosse o teu número
De circo, de contribuinte
De telefone ou de porta
A tua cara
A sombra de Brel e o teu cão
Um fundo de garantia
Tivesse Caixa e seguro de vida
Coincidisse com sete fôlegos
Ou ofícios
Inflamável d’ Inverno e sereno durante o Verão
Um poema que não aceitasse devolução

Ana Paula Inácio, Dezembro de 2019.

Poema de Natal

Não quero um poema à prova de bala,
impermeável, tamanho low cost para caber
no fôlego do riso, sílaba a sílaba reciclado,
após a passagem de deus ou da desinfecção.

Não quero um poema asséptico nem ascético,
estrofe lipoaspirada para vestir um número abaixo
de todos os desejos ou que coincida com gregos
e troianos, tempo de uma voz só, uma assimilação.

Quero um poema de peito aberto, submerso pelas
tempestades de noites como esta, a escrita a cobrir os
planos inclinados de síncopes e tudo o que é cicatriz
acumulando-se entre os dedos, desperdícios de oração.

Quero um poema que ouse ou que resista, consolado,
consoada de probabilidades acima da média, anacrónico
como o amor que ilumina as noites mais escuras e rouco,
rouco deste silêncio que é de tudo iniciação.

Quero um poema que não aceite devolução.

Dezembro de 2019 | Sandra Costa