terça-feira, 26 de março de 2013

Still Life #4













René Groebli, da série «The Eye of Love», 1953


Still Life #4


Num hotel barato de Paris, o que resta
do amor é uma composição imóvel
onde cada elemento deixado ao abandono
- o último eflúvio da rosa, o rumor rubro
do vinho, a sombra táctil do cigarro -
explica como o tempo, quando perto
do coração, se materializa numa oração
desprovida de significados mas onde cabe
a luz suficiente dos objectos mais quotidianos.

[Sandra Costa]

Still Life #3

















Kristoffer Albrecht, 1986



Still Life #3

A maçã no parapeito da janela, com as folhas
que ainda há pouco morriam na árvore dobradas
sobre o silêncio perplexo da espera, é a demonstração
de que o rigor do Inverno nem sempre encontra
a casa como se esta fosse uma ilha. Por vezes,
a respiração das sombras, no percurso entre
dois sintomas da fragilidade do mundo, deixa
que nas vidraças se forme uma clareira e por ali
se pressintam outros medos outras pausas
para além da constelação de gelo que tudo 
cobre, impotente como um pálio.

[Sandra Costa]

sábado, 23 de março de 2013

Still Life #2


















Kristoffer Albrecht, 2009



Still Life #2

Enquanto durar o poema, no gargalo
da garrafa a Primavera permanece intacta.
O ramo da cerejeira suspenso num
desfiladeiro de vidro cria duas margens
de água mas ali não há milagres e a
transparência que resiste dobrar-se-á
em breve num lugar estagnado,
talvez sagrado, onde a natureza morre
e um poema acaba.

[Sandra Costa]