sábado, 28 de dezembro de 2019

Epigrafia #15

                                               
Fotografia de Adelaide Sá.

«E entro sozinha no barco de mim.»

Maria Ondina Braga, «A Filha do Juramento», Edições Autores de Braga, 1995

Tudo na imagem é movimento. A incrédula
ondulação do rio antes de se entregar, tréguas
consumadas entre margens, amante que claudica,
à maresia. O reflexo imperfeito, desamparado,
quase desfeito dos barcos ancorados à superfície
de um espelho que é, afinal, só água, só o amor,
essa substância ainda mais inacabada, mas que
cintila como todos os beijos ou todas as palavras
ou todos os silêncios que terei de encobrir. A luz
tardia, a inclinar o poema para além da cidade,
torna tudo impreciso, um improviso, obscuro
o que apenas subsiste, mas comove-se com
a improvável revelação do teu riso quando
te apercebes que os barcos não têm nomes,
só números, e assim não os podes evocar.
Tudo na imagem é um instante. O que oscila,
afinal, é o tempo, esse pranto que se acende
ou se apaga, no lado de dentro do meu coração.

[Sandra Costa]

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