sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Antologias - V

                                               


«um lugar sem onde» [1]

Sabes, Mário, escrever-te é uma ousadia.
Até há pouco tempo eras apenas um nome
entre a pintura e a escrita que eu não sabia
sequer situar. Mas o mundo está sempre 
a designar as coincidências necessárias para
que algo se crie, mesmo quando é a morte
a aproximar-se que me leva até ti.

Outro Mário trouxe-me as coordenadas 
para te encontrar: a Nazaré, a Pedra do Guilhim,
tu desalinhado a caminhar numa memória difusa 
com os dois galgos e «um lugar sem onde»,
que passou a ser o teu lugar porque é o sítio
onde está o meu olhar. No segundo verso desta 
estrofe, troquemos o verbo encontrar por descobrir,
os dois sabemos porquê, e mesmo que a morte
venha como um caminho de dez ciprestes, também
eu acreditei em algo bonito para onde caminhar.

Sabes, Mário, numa noite de Setembro, não 
nesta de Maio que nada nos diz, nesse mês 
que trouxe a tua morte e o meu nascimento, 
talvez consiga ficar sem pé como tu e, com um 
S bordado numa túnica porque não uso vestidos, 
talvez volte a sonhar acordada, da forma que só 
nós conseguimos fazer, e me aproxime das 
tuas queridas nuvens como nunca me consegui 
aproximar, mesmo que acabe de pressentir 
que foram sempre elas, e o mar, a trazer-me 
o longe, o amor, para dentro dos poemas.

Olho uma última vez para o teu texto aguarela,
o primeiro e o último adeus, conto de novo 
sete mais três ciprestes, contorno os ombros 
desnudados da mulher que nunca fui nem serei, 
mesmo de costas, e de pormenor em pormenor,
evocando os regatos apenas descritos, repetindo
as tuas manhãs de tímidas madrugadas, tento 
chegar a esse minúsculo espaço inquieto que
existe e nos separa neste encontro, cada um 
com a sua solidão, e que, afinal, não hesitemos,
define o mundo, esse «lugar sem onde».

[1] Verso de m. parissy in norte, falca e légua, Companhia das Ilhas, 2021.

Sandra Costa, 19-20 de Maio de 2021, sobre o Texto/Aguarela de Mário Botas, de 18-19 de Dezembro de 1977

[Poema publicado na antologia Falar dele no céu de uma paisagem. Poemas para Mário Botas, volta d'mar, 2021].


Lisboa, 18-19 de Dezembro de 1977

Minhas coisas tão docemente amadas, meu Oceano que és para mim o que nunca foste nem serás para ninguém, minhas manhãs de tímidas madrugadas, minhas águas correntes de regatos imensos que não estão no corpo mas na alma e desaguam sempre noutro rio até chegarem àquele a quem os antigos chamavam Letes. Minhas queridas nuvens:

É uma grande ingratidão amar-vos tanto e ainda vos não ter escrito. Mas sei que me hão-de perdoar. Se só agora vos falo é porque talvez esteja agora mais longe de vós e mais sinta a vossa falta. Talvez por ter sido sempre impenetrável na minha completa solidão e me convencer finalmente que vou morrer tão só como nasci e cresci. Só que então eu não dava por isso. Damos sempre pelas coisas quando elas já passaram… Não sei porque escrevi «Damos»… «Dou» era o que eu devia ter escrito. Esqueço-me sempre de que só posso falar — e aproximadamente — de mim. Com o resto nem sequer me devia preocupar. O milagre de estar vivo e de vos conhecer é tão grande que me devia bastar para encher os dias todos, mesmo que eles fossem muitos. Mas… esquecemo-nos tão depressa destas coisas tão simples! Lá estou eu a falar outra vez no plural! Nisto como em tantas outras coisas não vou ter emenda até ao fim dos meus dias.

Quando vocês me conheceram eu ainda não dava sequer por vós, meio assustado ainda com a vida… Agora já muito pouco me assusta, ia a dizer quase nada. Por isso abro mais vezes os olhos para vós e chego a pensar que me escutam.

Foi tudo tão rápido embora eu goste de velocidades!!! E no meio de duas pessoas que se encontram como no meio de alguém que se encontra a si próprio há sempre um espaço qualquer que nem por poder ser muito pequeno deixa por isso de ser muito importante. Tão importante que se não existisse não havia o Mundo… Tenho pena de vos deixar assim… Mas não é o hesitar que faz o êxito. E muito menos o ser de Tão Longe.

Tenho-vos sempre na lembrança.
Mário

Aguarela de Mário Botas, 1977 in Catálogo da Primeira Exposição Póstuma da Obra de Mário Botas, Cooperativa Árvore e Centro de Estudos Pessoanos, 1984 e Texto transcrito in Aventuras de um crâneo e outros textos, org. de Daniela Gomes, Inês Dias, Luis Manuel Gaspar e Manuel de Freitas, Lisboa: Averno 2013.

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