As palavras poupadas
Tivesse Graça aberto a janela, naquele anoitecer
do dia dez de Outubro de um ano qualquer,
mas vinte anos depois, e por baixo do candeeiro
que ficava no passeio em frente coincidisse
a sombra daquela que combinara aparecer depois
das seis com o que restava deserto e molhado na rua
e talvez tudo pudesse ficar irremediavelmente
diferente e consertado e não fosse uma corrente
infinita de palavras poupadas.
Soubesse Graça o nome da árvore que permanecia
do outro lado da janela do quarto, não fossem
para ela as árvores apenas árvores, folhas fustigadas
pelo vento que por vezes lhe vinham tocar na vidraça
pedindo refúgio, e talvez uma palavra mais tivesse
sido pronunciada, e não silenciada, as palavras
apagadas do pensamento como prometera a alguém,
«custava alguma coisa?», as palavras que não eram
simples como todos supunham e podiam compor
o que já estava estragado para sempre e naquela noite
em que ela se calara mais uma vez e estremecera
com a teia de aranha que lhe tocara no rosto e era
tão só um fiapo das flores dos castanheiros-da-índia,
que na Primavera davam sabor à aragem na cidade,
havendo afinal pelo menos o nome de uma árvore
que lhe ficara inscrita na memória.
Pudesse Graça abrir os olhos, que uns dias eram
verdes como as algas e noutros dias eram castanhos
sem qualquer comparação, e há muito teria reparado
que a pintura, pendurada no que tem de intacto
o tempo dos velhos lugares, tinha um traço grosseiro,
«ainda desenhas?», invadira-a de repente a provocação,
e que o desejo de ir era o de esperar. Esperava que a
compreendessem e a perdoassem. Esperava o amor,
a liberdade, regressar onde já nada a esperava e
esperava que lhe escrevessem, mas era dia de espantos
e Graça sabia, por aquela que combinara aparecer depois
das seis, que nunca se deve pedir que nos escrevam.
«Não percebes que é um pouco como se lhes
pedíssemos uma esmola?» O desejo de ir não era
uma dança, um dia fora um largo mar, sempre o mar,
ou uma longa jogada de xadrez consigo própria,
quase uma explicação, mas o desejo de ir, de seguir
adiante com os olhos postos em doce repouso no fim
do caminho, morre todas as noites para não voltar.
Sandra Costa
Poema escrito com «As Palavras Poupadas» e «George» de Maria Judite de Carvalho».
[Poema publicado na antologia Água Silêncio Sede. Homenagem poética a Maria Judite de Carvalho no centenário do seu nascimento, Poética Edições, 2021].
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