quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Da série «Manual da vida breve» - VII


12.

No manual da vida breve, onde os dias
se (des)fazem úteis e o tempo se conta pelos
dedos como dantes se contava a tabuada,
os poetas interrogam-se: que sabem eles
de poesia? Onde param os versos que sopram
para longe o nevoeiro que cega e entontece?

(e se desconhecem que à cor afogueada que
toma a atmosfera depois do sol se pôr se chama
arrebol, por minha vontade ditava-lhes que
ficassem sentados à sombra da vida que se
esconde a observar as morosidades dos bois
antigos nas voltas da nora à espera
do favorecimento das Graças)[1]






[1] Poema escrito sobre este texto de José Rentes de Carvalho.



Da série «Manual da vida breve» - VI


9.

Sobre o sentido de certas fábulas,
o poeta falava de uma presença dentro do vazio [1].

Se calhar, onde nada existe
passam nuvens e por vezes chove.

Sob essa amplitude das palavras,
das sombras das nuvens que passam,

a terra é cada vez mais o silêncio que resta.






[1] Expressão de Cesare Pavese em Os Cegos in Diálogos com Leucó. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Perdidos e achados I

Observações

Janeiro diz-se magnólia porém, este ano, as magnólias abriram por Fevereiro dentro. As magnólias abrem e caem consoante a cor: primeiro as mais claras, no fim as mais escuras. Se não me limitasse a observar poderia construir uma teoria sobre a leveza. As magnólias brancas são tão frágeis quanto a claridade ou a solidão: sobre elas, os dias de sol foram pequenos incêndios. Se tivessem florido em Janeiro, as magnólias teriam caído todas sem que as suas folhas verdinhas aparecessem – mas Março está a terminar e as magnólias rosa-claro estão cheias de folhas e ainda em flor. As magnólias roxas abriram em Março e há uma que tem um ninho. O cheiro das magnólias é tão suave que temos sempre de nos erguer sobre as pontas dos pés para encontrarmos o desequilíbrio. Se não me limitasse a observar eu escrevia que gosto muito de magnólias. Como de coisas frágeis, coisas de partir, como de coisas efémeras mas que nos devolvem o hábito de acreditar. Na claridade ou na escuridão. Se não me limitasse a observar eu agora vinha pedir um poema novo de Tonino Guerra que nunca deve ter escrito sobre magnólias. Ter-se-á ele também limitado a observar? Na claridade ou na escuridão.

[Sandra Costa, no idos de 2005]

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Traições I

Tattoo

The light is like a spider.

It crawls over the water.
It crawls over the edges of the snow.
It crawls under your eyelids
And spreads its webs there--
Its two webs.

The webs of your eyes

Are fastened
To the flesh and bones of you
As to rafters or grass.

There are filaments of your eyes

On the surface of the water
And in the edges of the snow.

Wallace Stevens





Tatuagem

A luz é como uma aranha.

Move-se sobre a água.
Move-se sobre os contornos da neve.
Move-se sob as tuas pálpebras
E aí espalha as suas teias—
As suas duas teias.

As teias dos teus olhos

Estão presas
À tua carne e aos teus ossos
Como em traves ou na relva.

Há filamentos dos teus olhos

Na superfície da água
E nos contornos da neve.

Tradução: Sandra Costa (2005)


terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A vocação dos homens silenciosos II












Todo o tempo é curvo

quando nas tuas mãos
sou trajecto e às vezes pássaro. 


Sandra Costa, A vocação dos homens silenciosos, Cosmorama, 2006.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A vocação dos homens silenciosos I












Suspeitava que quando regressasse 

às palavras sentiria medo e um tolo 
desejo de ser musgo de inverno 

nos telhados das casas abandonadas. 



Sandra Costa, A vocação dos homens silenciosos, Cosmorama, 2006.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Polaroids - II

Polaroid de Andrei Tarkovsky. Daqui.
«Polaroids»

II

O muro fica num caminho que deixei de percorrer e forma uma curva coberta de folhas vermelhas adornadas pelo sol. Ao lado do muro, a estrada é em alcatrão mas as bermas são de terra e de ervas daninhas. Com alguma atenção, consigo ver as nuvens projectadas no princípio daquilo que fica para trás.


Sandra Costa

[série de textos/poemas, chamem-lhe o que quiserem, que não foi escrita para as belíssimas polaroids de Tarkovsky]