sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #4

Ferdinand Hodler (1835-1918), A Noite (1889-1890), Kunstmuseum de Berna

Desde que começara a visitar o museu, A Noite, de Ferdinand Hodler, sempre estivera lá. No entanto, apenas naquela terça-feira se iria demorar junto da tela e tentar verdadeiramente aproximar-se dos seus possíveis significados. Atravessou a galeria principal da exposição permanente sem olhar para qualquer dos quadros ou as poucas pessoas que ali se encontravam e entrou na sala dedicada ao pintor simbolista.
Sete, não, oito figuras deitadas, Hodler claramente em duas delas e Augustine e Bertha como figuras femininas em destaque, recordava-se de ter lido isso no catálogo que levava debaixo do braço. Todas as figuras nuas, ou assim lhe era dado imaginar, mas só Bertha completamente descoberta, de costas para quem observava, adormecida nos braços de um homem que não era Hodler. Sabia que o tema do quadro era a morte mas por um instante imaginou que fosse o amor, ou a paixão.
Conhecia bem a história de vida do pintor, como a morte lhe circunscrevera a infância, pelo que não se espantava que ele a percepcionasse como um elemento natural, ainda que coberto de panos negros, que a qualquer momento se apodera do nosso corpo, como qualquer princípio de ordem e repetição de que a natureza é feita. Entendia, por isso, a sua necessidade de colocar os corpos em camadas paralelas, de linhas e de cores. Menos perceptível, mas mais do seu agrado por todas as interpretações que lhe podia dar, era a posição da morte sobre o baixo ventre do único Hodler que não dormia naquele quadro.
Sempre que tinha um daqueles pensamentos que fugiam à moral e aos bons costumes, seja lá o que isso fosse, um sorriso tornava o seu rosto menos austero e todo o seu corpo ficava mais atento à realidade que o rodeava.

[Sandra Costa]

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