terça-feira, 29 de agosto de 2017

Exercício 2.0 #6

O primeiro detalhe em que reparara ao entrar na sala Vallotton fora nos seus pés descalços, ligeiramente inchados, e numas sandálias pretas abandonadas por baixo do banco. Por momentos, parara junto da porta e olhara em redor à procura de alguém tão espantado quanto ele mas apenas encontrou o seu reflexo no silêncio.  Não havia mais ninguém na sala, apenas aquela personagem que se interpusera entre ele e o seu segundo objetivo da noite, porque entretanto anoitecera e o tempo começara a tornar-se numa substância que tudo extingue.
Entreteve-se com Des tas de sable blanc e Capucines, marguerites et églatines, tendo também espreitado o papel de parede da sala Villa Flora, reconhecendo os motivos desenhados por Hedy Hahnloser-Bühler, mas não se conseguia concentrar. O seu olhar desviava-se a cada instante para a figura sentada em frente a La Blanche et la Noire e os seus pés descalços que, apesar de inchados, não paravam quietos.
Não se recordava de ficar assim perturbado com tão pouco, há muito tempo. A realidade era uma sucessão de equilíbrios que ele estreitava contra o peito sem que a sua percepção dos dias e das noites fosse alterada, a respiração controlada perante a construção do mundo à sua volta, nenhum deus de permeio, para além da literatura, onde sempre tudo se desvanecia, até ele.
Quando já não podia mais fingir, mas deixando uma distância conveniente, sentou-se em frente a La Blanche et la Noire, de Félix Vallotton. Era inevitável que alguma coisa estava para acontecer.

[Sandra Costa]

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