Abeiro-me do princípio
Abeiro-me do princípio, do precipício cego
da primeira palavra, do primordial canto
das musas sobre a extinção do silêncio
do mundo, desse bosque sagrado onde nove
vozes entoam o tempo, cobrindo de flores
silvestres as grinaldas que só existem nas noites
crónicas mais incandescentes.
O que começa é já um rasto que se alonga,
apagando-se, como uma sombra subindo a colina
do Hélicon, debruando de melancolia as encostas
descendentes, a seiva, o pólen, a saliva terna
trémula translúcida do primeiro beijo, aquele
que se deu, aquele que se deseja, o sémen
onde vagueia a alegria, essa fonte que sendo
espelho, dança, expiação musical, nunca será
o rosto de Clio, nem a penumbra memória
maternal.
Concretizo campânulas candeias cisternas
com a erosão das palavras sobre o esquecimento
e as formas mudas rasas verdadeiras, o sonâmbulo
e petrificado universo dos mortos, os lugares
pendulares das aves e das estações, transfiguram-se,
de novo, tantos séculos depois, na alegoria de
Vermeer, recriando símbolos narrativos e
efeitos de luz. Fórmulas mudas rasas verdadeiras
para que os instantes se perpetuem, repetindo-se,
na terceira margem do rio de Guimarães Rosa,
essa parte nenhuma do silêncio escrito, onde
persistem pernoitam perduram as canoas
dos homens que partem. «Esta vida é só
o demoramento». E o amor.
Sandra Costa
[Poema publicado na antologia 110 anos, 110 poetas. Antologia comemorativa dos Cento e Dez anos da Universidade do Porto, U.Porto, 2021].
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