sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Antologias - VIII

                                               

Fotografia de Bernardino Pires

Desejo impróprio

O solstício de Verão ocorrera no dia anterior.
As horas diurnas começavam a decrescer
em compasso lento, lentíssimo, irregular,
ao ritmo inquieto das festas onde quase
todos os enlevos, fábulas e sortilégios
procuravam encostar-se aos corpos
que caminham no dorso da penumbra.
.
Crescia a esmo nos quintais alheios,
entre as ruínas opacas do tempo,
o alho francês espontâneo, no tom
que se deseja purpúreo, outrora colhido
na noite joanina e que agora se vende,
porro, aos molhos, de antemão,
apagadas as sombras antigas dos gestos.
.
Assim expostos, nítidos como só
os desejos mais impróprios se escondem
nas palavras íntimas que não chegam
a compor-se, tudo o mais fica desfocado,
as três mulheres que nunca cumpriram
a madrugada rebolando-se no orvalho
dos campos, o homem que não se enquadra
nestes desígnios, nem com o olhar,
e eu que regresso a casa, tantos anos depois.
.
Trémula, sem saber o que significa
um encontro ou uma canção
que ainda ouço como se pudesse
ser cura para o amor, não reconheço
o toque das plantas liliáceas, nem
me reconheço naquelas três mulheres
que caminham na quietude
das vidas consumadas.

Sandra Costa

Poema escrito para a fotografia acima incluída de Bernardino Pires.

[Poema publicado na antologia A cidade do Porto na Obra do Fotógrafo Bernardino Pires, in-libris, 2022].

Sem comentários:

Enviar um comentário