terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia catorze (como se fosse dia vinte e cinco)

Poema de Natal





Pois o meu sentimento de felicidade inominável virá mais facilmente de uma 
fogueira de pastores distante e solitária do que da contemplação do céu estrelado

Hugo von Hofmannsthal

Uma mulher junto à janela emoldurada pela neve,
como num postal antigo, observando não se sabe
que estação onde se cumpre a improbabilidade dos dias.

A alusão a uma fogueira de pastores distante e solitária
preterindo-se a cartografia anunciada a um doce e imprevisto
silêncio que corrói cada verso que fica por escrever.

A acústica do que é eterno e inominável, e por isso mesmo
imperfeito, como o único vestígio de que é possível
a floração da luz como presença do sagrado.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

Calendário do Advento 2012 - Dia treze

Poema de Natal


                                                            Escondo-me atrás de coisas simples, 
                                                            para que me encontres

                                                            Yannis Ritsos


Esta podia ser uma frase de amor ou de um qualquer
deus dirigida aos homens incrédulos, o que no final
de contas é a mesma coisa pois o que as palavras
dizem é que em cada um de nós persiste um desejo
de ir para além da solidão, de captar esses pequenos
trechos de mundo que desde a infância, ou do primeiro
beijo, deixamos crescer por entre os silêncios que nos
comovem.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

Calendário do Advento 2012 - Dia doze

Poema de Natal

                                                                                  a laranja, (…)
                                                                                  como interrompe o mundo
                                                                           
                                                                                  Herberto Hélder

Agora que o inverno chegou e os dias explicam-se
com sílabas menos breves e um pouco mais de luz a
interromper o mundo; agora que enches a casa com o
fogo dos frutos e as mãos com o cheiro ainda invisível
do sol; agora que colhes o que o frio amadureceu como
se essa fosse a ordem natural das coisas

Agora renovam-se os atalhos até ao centro da terra,
até ao primeiro elemento que se celebra em nós
quando nos aproximamos da laranjeira como se
a sua sombra, ainda coberta de nuvens, fosse o
que de mais semelhante existe àquele advento
em que não crês.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

domingo, 23 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia onze

Poema de Natal



É possível que o mundo ainda tenha à sua frente
e atrás de si primitivas linguagens, dois ou três astros
por descobrir, milagres inacabados e uma melodia
escondida no diafragma.

É possível que o mundo ainda gravite em torno
da floração das mãos, se desdobre em janelas iluminadas
contra a noite fria e regresse à revelação dos segredos
junto ao parapeito onde os anjos espreitam.

É possível que o mundo ainda cintile, ou entendendo
as palavras de Rilke como uma liturgia, é possível
que o mundo ainda seja como a última pequena estrela 
é para noite.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

Calendário do Advento 2012 - Dia dez

Poema de Natal


Aonde vais, meu coração vazio?

Camilo Pessanha


Não sei como dizer-te que é uma luminosa expedição
preparar o caminho para o inverno: cobres os pulsos
de pressentimentos e estremeces sempre que uma
sombra se concretiza entre duas árvores; soam mais
espessos que a chuva os poemas que não deixam
vestígios; em cada imperfeição espelhada no frio
miríades de imagens abrem como chamas.

Não sei como dizer-te que é entre os dedos
enregelados de Dezembro que florescem os milagres 
bafejados pela vertigem terna de um coração vazio.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

Calendário do Advento 2012 - Dia nove

Poema de Natal


Será que Deus não consegue compreender a linguagem dos artesãos?

Herberto Hélder


Senta-te sobre as pedras a conversar com Deus. Vidro.
Música. Mel. Cantaria. Sopra o vidro de uma vez só,
deixa que a forma se despegue do medo. Não pares
de debruar as ânforas que ficaram por encher, desata
com as mãos a melodia a que se agarra o silêncio.
Uma espécie de auréola debruça-se sobre as flores
e com a polpa dos dedos deixa escorrer semelhante
ofício sobre os favos da sede. Por fim, lavra o caminho
com a substância das estrelas mesmo que utilizes
o martelo e entre os batimentos demora-te nos pássaros
que pousam sobre as romãs. Bago a bago desfaz
a película que protege os antigos mandamentos
e devolve-os em versos para que assim se construa
uma linguagem terna e comum.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

sábado, 22 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia oito

Poema de Natal


Alguém queria saber como se transformam
as palavras em dedos que movem o mundo,
como se acrescenta eternidade à inclinação
que as escadas têm na infância, como levedam
os poemas quando os frutos são colhidos
pelas tempestades.

Alguém queria saber como oxida o silêncio
quando observas aquela noite diante de um lugar
fechado onde tudo começa a acontecer.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

Calendário do Advento 2012 - Dia sete

Poema de Natal


E tu atravessarias a penumbra que só existe
entre as árvores que se enchem de milagres
esquecidos.

Atravessarias sacudindo o joio, desfazendo
os nós que separam o sagrado da celebração
dos dias, extinguindo os relâmpagos das
confidências.

E quando a noite fosse só noite, atravessarias
aqueles ramos trémulos repetindo uma oração
inacabada, porque só vacilando é que Deus
se aproxima dos homens.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

(dedicado à Joana)

Calendário do Advento 2012 - Dia seis

Poema de Natal


As estátuas foram as primeiras a partir.

Yannis Ritsos


Nenhuma vela ficou acesa no poema. Cobriram-se
de sombras as canções da época e os cântaros
da chuva apagaram-se como se não sobrassem
invernos, musgos, beirais.
Se não houver mais nada,
demoradamente espera            (mas não lamentes
os dedos onde já não pulsa o coração). Abre a
morte como abres uma laranja e devolve à terra  
o ofício de interromper as promessas e as ruínas 
das palavras que ficaram por dizer.

Depois de tudo isto procura por debaixo da porta
a falta que faz uma luz sobre tão desamparada escuridão

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

(dedicado à Inês Dias)

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia cinco

Poema de Natal


…triste como um rio, sereno como as pontes…

Ruy Belo

Silêncio sobre o silêncio. De asa partida
desce as escadas de casa a luz da manhã
e nada se eleva sobre tão misteriosa passagem.
Acumula-se o pó entre um verso que morre
e um poema construído de escombros
e de repente apercebes-te que o musgo dos
telhados é tão só um efeito secundário, quando muito
uma condição necessária, para que um deus
sobreviva aos dias que passam, serenos como os rios,
tristes como as pontes

Afinal onde está esse deus que nasceu?

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

(dedicado à Margarida)

sábado, 15 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia quatro

Poema de Natal

Preparai o caminho do Senhor e endireitai as suas veredas. Toda a ravina será preenchida, todo o monte e colina serão abatidos; os caminhos tortuosos ficarão direitos e os escabrosos tornar-se-ão planos. (Lc 3,4)

Num tempo onde já não há profetas nem
sinais na espessura do arvoredo, onde os velhos
salmos já não estabelecem os limites da terra e os
tumultos são casulos de silêncio, arrepende-te,

escreve um poema e persegue as veredas até que
fiquem planas, não fiques à espera que sequem
os rios impetuosos mas prepara a luz e o sol para que
em ti se preencham todos os lugares impossíveis

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia três

Poema de Natal


Nas paredes do Convento de São Marcos,
em Florença, por duas vezes Fra Angelico
anunciou o impossível.

No cima das escadas, algures no corredor norte,
as asas do anjo desdobram-se em cores
abrindo o silêncio num claustro de colunas
coríntias – a mulher carregando uma sombra
que deflagra, Gabriel do outro lado do mundo
tão perto de uma rendição.

Na cela n.º 3, entra. Não digas nada. Visita-a 
como se desde sempre também estivesses à espera.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia dois

Poema de Natal

Os que acreditam que a luz da manhã
coincide com a eternidade das árvores, com o que
sobra da solidão nas paisagens inacabadas

Os que acreditam que a lucidez
se desfaz na primeira palavra que toca os despojos
da infância ou o rasto inexistente das confidências

Os que acreditam que nenhum pormenor se apaga
quando alucinas e sobrevives às tardes de Inverno
que existem nas canções de Tom Waits

Os que acreditam que o amor é um nome precedido
por um regresso

Os que acreditam                  

desdobram os poemas como se lá dentro 
houvesse ainda um segredo por desvendar

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Calendário do Advento 2012 - Dia um

Poema de Natal


Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.

José Tolentino Mendonça,
in Diário de Notícias (Madeira), 12.12.10


A forma como começo há-de ser tão leve como o silêncio:
nada será dito como se fosse uma repetição, nada acontecerá
como se fosse a primeira vez. Dentro das palavras
apenas o perfume de uma trégua e em cada gesto
o estilhaço de pequenas flores.

A forma como começo há-de ser tão leve como o silêncio:
tão leve como a distância que existe entre uma estrela
e o primeiro indício que tudo mudou.

Dezembro de 2012

[Sandra Costa]



(dedicado à Helena Araújo)